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O sonho do Toninho

O sonho do Toninho

O sonho do Toninho era ser tocador de violão. Violonista profissional, sabe? Desde que tinha 4 anos ficava atento aos sons que o instrumento fazia.

Aos 6 anos improvisou seus primeiros dedilhados. Tocava de ouvido, dizia, orgulhoso.

Acontece que o Toninho era ruim demais. Quando adolescente andava para cima e para baixo com o seu violão debaixo do braço. Os amigos ao vê-lo entrar com a sua sacola com revistas cifradas já franziam seus rostos, desgostosos. Que situação lastimável. Alguns o chamavam de Chatotorix, maldosos. Outros diziam que já poderia juntar-se a outros do mesmo estilo e criar uma concorrente para o Restart.

Mas ele tocava com uma empolgação que emocionava aos mais apaixonados por histórias de superação. A empatia era imediata. O segundo momento era de repulsa e o terceiro despertava instintos assassinos que nem ao menos era sabido ter.

Rolava um churrasco na casa da Flavinha quando o grupo se juntou para tentar conter o Toninho, pelo menos aquele dia. Algo precisava ser feito, era o aniversário dela e ninguém merecia tal heresia em data tão comemorativa. Combinaram de que ao primeiro vacilo surrupiariam o violão e rasgariam uma das cordas, o que o impediria de continuar tocando.

– Rasga logo duas e não corremos o risco dele querer tocar mesmo com uma corda a menos!

– Credo! Imagina o desastre que isso não seria?

– Boa! Por mim quebrava logo o violão e pronto!

Mas ninguém queria destruir o tão amado instrumento do Toninho. Entraram em acordo e duas cordas seria suficiente.

Lá pelas tantas chegou o Toninho, com seu instrumento debaixo do braço. Tão logo chegou, abriu sua case e amealhou uma sequência de Legião Urbana que fez a mãe da Flavinha, evangélica devota que era, iniciar um sermão para expulsar o capeta de dentro do menino.

Aquilo deixou Toninho bastante envergonhado. Levantou-se para lavar o rosto e tomar um refrigerante, do que aproveitou-se o Nestor, que foi até o seu instrumento e serrou duas cordas. Quando voltou, lá foi o garoto recuperar sua posição diante do violão. Ao primeiro toque o som saiu tão estranho que até ele parou. Tentou mais uma vez e o som ficou ainda mais esquisito. Não era o desafino, a isso ele estava acostumado. Colocou o violão à sua frente, como se a analisá-lo. Percebeu os minúsculos corte e, ao aproximar-se, as duas cordas estouraram ferindo-lhe os dois olhos.

Correria, ambulância, lá foi Toninho para o hospital, coitado. Acreditava, internamente, que o violão havia se vingado depois de tanta tortura. Perdeu grande parte de sua visão, e poucos meses depois estava completamente cego. A depressão tomou conta.

Refugiou-se em seu quarto durante tempos. Inicialmente, recusou-se a sequer encostar em seu instrumento vingador. Mas era ele a sua fraqueza. Logo depois, lá estava ele, se aproximando do bichano. Um leve toque na mão do violão. Outro leve toque correndo a mão a correr pelo braço do instrumento. Quando acordou do transe, tocava um lamento que se fazia ouvir em toda a vizinhança.

Algo tinha acontecido. Algo tinha mudado, no entanto.

A mãe de Toninho, que desde o acidente vivia em função do agora incapacitado filho, subiu as escadas a se perguntar que som era aquele. Incrédula, abriu a porta e deparou-se com o Toninho tocando uma música que até hoje jura ter sido a mais bela que ouviu em toda a sua vida.

Em pouco tempo, Toninho virou estrela. O músico cego que superou um acidente terrível para aprimorar sua técnica artística. Sucesso de público e de crítica. Sua habilidade era exuberante. Inigualável. Uma mistura de Yamandu com Raphael Rabello e Baden Powell, com uma pitada de Villa-Lobos, uma loucura. Gravou com as mais importantes orquestras mundiais. Lançou discos ao lado de celebridades da música. Arrecadou fundos para a causa ao fazer projeto conjunto com Andrea Bocelli.

Enriqueceu.

Mês que vem sai o longa-metragem a contar a história de Toninho, que irá terminar com uma gravação de um DVD junto com a Filarmônica de Berlim no Carneggie Hall em Nova Iorque. Épico.

Entrevistei o Toninho pouco antes de sua viagem para os EUA. Confessou-me que o violão sempre fora sua paixão e ele, o violão, entendera que sua visão atrapalhava seu verdadeiro potencial. Afinal de contas, sempre admitiu tocar de ouvido.

Assim quis o destino. E quis o Nestor, que nunca mais foi visto na turma.

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