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O mundo é do tamanho de até onde a vista alçança.
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O conselho de anciãos da pequena cidade do interior se reuniu a desvendar o mistério que rondava a até então pacata comunidade: o paradeiro de Valair. Chamar o vilarejo de cidade é desses arroubos megalomaníacos que se ajustam ao tamanho de sua ambição. Com pouco mais de 200 habitantes, cidade é que não era, não senhor. Estava mais para uma vila de pescadores encrustada no litoral catarinense, em plena década de 1930, longe de mapas e de modernidades, quando nem estrada existia.
A ordem do dia se revezava entre a maré e a luz do sol. O despertar era preguiçoso. A alvorada invadia as casas, iluminando a poeira que pairava e criava um efeito belo de neblina interna, acentuada pelo café que passava no coador e um cheiro de pão feito em casa.
No seguir do tempo, apressavam-se todos a seus afazeres, porém não confunda pressa com rapidez, longe disso. Os crescidos já seguiam para fora, aparato descansando na restinga, no que punham-se a preparar a rede, a verificar a corrente e a pitar um pouco de fumo. Dentro, as mulheres já no adiantado do desjejum, chamavam pelos seus.
Comiam e conversavam. Banana da terra frita, pão e queijo caseiros, frutas, café com leite, às vezes um ovo, preparado no humor de matriarca.
Aos poucos, os canoeiros se encontravam na praia, um a um, cada qual no seu canto, a entender se agora ou daqui a pouco, a desenrolar mais um tanto da rede.
O cantar das senhoras no afastar das embarcações se fazia ouvir quase como lamento:
“Valei-me, que vão na hora,
Aonde se faz morada
Deuses dos mares,
Se me permitem incomodar,
De despertar dos seus descansos,
‘Inda por cima, a rogar
Acalmai as ondas,
Segurai as tormentas,
Guiai aos cardumes,
Calai as sereias
Segui no meu cantar
E no arrastar da rede cheia
Na volta, em oferenda, pescada no irajá”
Naquele dia, Valair fez saída com seu sobrinho, o Edivaldo. O pequeno bote para dois dava, sem exagerar no pescado, porque o tombo leva a colheita e o equipamento.
Algumas horas mais tarde, volta o bote, pouco pescado e tripulação pela metade.
– Cadê Valair, Edivaldo? Perguntou, aflita, a esposa.
– Ixi, minha tia…
Edivaldo contou então das intempéries que enfrentaram além donde a vista alcança.
– O mar estava agitado, como há muito não se via. Confiava em meu tio, experiente que é. E o vento apertou. Remamos como dava, não podia virar o barco! No balanço começamos a perdeu os peixes, por isso tão poucos aqui. Até que fomos sendo levados para um rochedo, e naquele instante, pude ver o horror na cara de meu tio. Era ali que a história se encerrava. Começamos a gritar por socorro, e você não vai acreditar, e eu só acredito porque eu vi!
Neste momento, o semblante até então aterrorizado de Edivaldo transformou-se em encantamento.
– Sentadas no rochedo, duas sereias! Lindas, lindíssimas. Lindas como a alvorada mais linda no dia mais lindo. Lindas. (suspiro) Nossas súplicas viraram silêncio, e na medida em que nos aproximávamos do rochedo, pudemos ouvi-las falando “Podemos salvar você. Apenas um.” A gente se olhou sem entender. E elas continuaram “Na hora do destino se realizar, uma vida é mais que duas. Nossa condição.” Meu tio começou a chorar. “Que foi, meu tio?”, eu perguntei. Ele apenas disse “você ainda tem muita vida pela frente, meu filho.” Consentiu com a cabeça para as sereias. Uma delas se apoiou na lateral do bote, nonde meu tio se agarrou e sumiu sob as águas, enquanto a outra me trouxe em contentamento até a areia.
Todos de boca aberta. Seria verdade?
O conselho de anciãos fora trazido em comunhão pela primeira vez em anos. O assunto exigia tal.
– É possível!, começou o ancião-mestre, já curvado pelo peso da vida, e o sábio mais respeitado do vilarejo. Eu também já passei por isso.
Na pequena praça, os anciãos no meio, rodeados pelo povo, embasbacado.
– E como trazer o Valair de volta? Gritou a esposa, na beira do desespero.
– Gente ardilosa é essa das sereias. Há, tão somente, uma maneira. Que ele seja atraído por outra em terra, a quebrar-lhe o encanto.
– Então vou logo!, apressou-se a esposa, confiante.
– Não, minha senhora. Não. Apenas alguém que se equivalha em juventude e beleza seria capaz de tal.
Todos, instintivamente, olharam para jovem Lucinda. Linda, lindíssima, era fonte de suspiros por onde passasse. Longos cabelos morenos cacheados, pele morena de sol, vestidinho que suscitava lascívias, um pecado.
– Edivaldo!, voltou o ancião. Amanhã, ao nascer do sol, seguirá você com Lucinda o mesmo caminho.
No nascer do Lucinda, uma preocupada Lucinda o esperava na frente da casa com frente pra areia. Nada falou, e seguiram.
No crepúsculo, a parada cidade entrou-se em polvorosa quando a matriarca chegou gritando à praça.
– É Edivaldo! Socorro!
Todos foram correndo seguindo a senhora. Na praia, deitado desacordado, respirando com dificuldades, o corpo de Edivaldo foi carregado para a casa de seu tio.
Acordou com o dia iluminando quarto onde repousava. Ao seu lado, sua tia dormia numa velha cadeira de balanço. Ao vê-lo acordado, buscou bandeja com o café-da-manhã. Esperou que ele falasse.
– Minha tia… A aflição era evidente.
– Acalme-se, meu filho. E chamando por alguém que a escutasse, pediu para o ancião-mestre fosse avisado e viesse ter com eles.
Poucos minutos depois, chegou o senhor de nenhum pelo ainda negro.
– Que aconteceu, meu filho?
– As sereias, meu bom senhor. Elas…
Pausou por um momento. Fechou os olhos apertado e continuou.
– Passamos pelo mesmo problema. Seguimos para as rochas, íamos bater, uma vez mais! Valair estava lá, e quando pôs os olhos em Lucinda, explodiu em amor por ela. Eu pude ver! As sereias, enciumadas, começaram, então, seu canto… E, pobre Lucinda, foi levada pela lábia venenosa. Gritei que “não! Jamais permitirei!” Elas, percebendo do meu não dobrar, caíram ao mar, numa rabada viraram o barco, uma delas buscou Lucinda, até que senti uma forte pancada na cabeça. E a próxima coisa que me lembro é de estar aqui no quarto.
A mãe chorou copiosamente. Que desespero! No fundo, sabia que jamais veria seu Valair de novo.
O conselho foi convocado. Ainda fraco, Edivaldo não foi ao encontro. Começou o ancião.
– Numa tentativa de recuperar nosso estimado Valair, perdemos Lucinda. E não podemos nos permitir que mais um seja levado. Confortemo-nos nos que ficam e rezemos para que sejam bem tratados e preservados pelas suas novas hospedeiras.
O burburinho foi aumentando de volume, choros se faziam ouvir aqui e ali.
Em poucos dias, a vida no vilarejo voltou ao seu habitual, embora alguns rituais tenham sido modificados. A esposa de Valair preservou seu leito intocado, venerando o marido roubado pelo feitiço cego das sereias. A mãe de Lucinda pedia pela misericórdia pela sua filha. Na lenda, fez-se conforto.
Todo fim de tarde, segue a esposa a admirar o crepúsculo. Coisa da cabeça dela, sem dúvida, miragem, pensa ela, quando vê a imagem de Valair e Lucinda, num barco sendo engolido pelo pôr-do-sol, abraçados em comunhão. “Não, não era um barco, era uma sereia mesmo, falava para si”. Ela via, mas não enxergava, ou será que sequer via? Afinal, quem haveria de acreditar na saudade retrabalhada de dita viúva? Porque quem cai nas garras das sereias, com vida não vive.
Embebido de trauma, seguiu Edivaldo para a Capital, sem nem voltar.
Tem-se a impressão de quem de lá sai, mais não volta.
Do horizonte, Valair e Lucinda, se abraçam, sentimentos misturados de satisfação a dois e ressentimento de deixar para trás o que havia de passado. Retornam remando para sua nova morada, a poucos quilômetros ao sul da costa. Barco cheio de pescado.
– Aqui estão os filhos das sereias!, são saudados todos os dias no atracar na praia, sem nem ainda reparar na barriga de Lucinda dali a pouco a se mostrar e a provê-las netos.