No auge da feiurice dos meus 13 anos, pongamos no carro rumo a Oliveira dos Brejinhos, no sertão baiano além-Chapada. Um período de descobertas e traumas.
Quando assentamos moradia na casa do Santo Antônio, em Salvador, estávamos temporariamente órfãos. Meus pais tinham ido recomeçar a vida em Campo Grande, no que ficamos os três irmãos com minha avó, que nos acolheu com todo o carinho que poderia.
O ano era 1996.
Nas férias de julho, Márcia, amiga da família, nos convidou para que passássemos, as crianças, uns dias em Oliveira dos Brejinhos. Não sei dizer se a ideia partiu de minha avó ou da prestativa amiga, mas não duvidaria do lamento por descanso de voinha. Subimos no carro para pegar mais de 600 quilômetros de estrada rumo ao sertão baiano, para lá da Chapada Diamantina.
Era a primeira vez que saíamos de Salvador para além de Camaçari. Se outra vez antes houve, não me lembro. Então, para mim, era desbravar o desconhecido. Éramos, assim, exploradores!
O MUNDO DA TV
A novela Pedra Sobre Pedra ainda estava fresca no imaginário dos baianos. Especialmente na minha, de adolescente começando a descobrir a sexualidade. A abertura exibia uma morena deslumbrante em metamorfose para elementos naturais da Chapada. Nua, seios lindos, curvas suaves, macias, mamilos entumecidos… Pedras, árvores, corredeiras… Apesar de não saber exatamente o que fazer com aquilo, eu sabia que era bom. A mulher e a Chapada.
Fez-se maravilhamento na criança poder identificar in loco cada elemento. Era como se o mundo da TV e o meu, de repente, fossem um só. Eu não apenas reconhecia a sua existência; mais do que isso, eu fazia parte de seu cenário. Pareceu um choque, uma epifania tola de criança que não estava acostumada a ultrapassar os limites da cidade: havia vida fora de Salvador e era de verdade.
Pedi para tocar Fagner no rádio do carro, mas não tinham a fita cassete. Cantarolei em silêncio. “Quem é rico mora na praia, mas quem trabalha nem tem onde morar…” Ao fundo, via o morro, revia de olhos fechados o seio e o corpo da morena e sentia reações com as quais não estava acostumado.
O LUXO EM OLIVEIRA DOS BREJINHOS
Chegamos a Oliveira dos Brejinhos já com o sol dormindo. Pouco pudemos do vilarejo, a não ser sua natural pobreza de sertão. Casebres de pau a pique, ruas de terra batida, pouca luz elétrica. Fomos para a casa de alguém que hoje entendo ser a irmã de Márcia, mas que facilmente poderia não ser; coisas de lembrança que se esvai. Eram próximas as duas, este tanto estava claro.
A casa era um palácio que contrastava com o entorno miserável. Foi o meu primeiro contato com a corrupção. Mesmo com a imaturidade dos meus 13 anos, estava óbvio que de boa coisa não se tratava. A irmã de Márcia era esposa do prefeito da cidade.
Ela nos levou para conhecer a casa. Enorme. Tudo decorado num brego-chique de filme de comédia pastelão. Na suíte principal, ela nos mostra uma parede enorme de guarda-roupas. Alguém pergunta se pode ir ao banheiro. A irmã, então, se dirige a uma das portas do guarda-roupas, igual a qualquer outra, abre-a e, supresa!, o banheiro está logo ali. Aquilo era estranho demais, o que ornava com todo o descabido que a residência proporcionava. Fiquei inquieto. Minha única preocupação era como é que se identificava na escuridão da noite, no meio do sonho e da urgência da barriga cheia, qual a porta correta. “Putz, calças; cacete, camisas; ah, não, vestido!” Se não desse para segurar até achar a verdadeira PORTA DOS DESESPERADOS, negócio ia ser explicar depois.
A casa tinha duzentos e trinta e sete quartos para abrigar um casal sem filhos. Ainda assim, nnão ficamos na casa deles, e imagino que prefeito e esposa não tivessem o costume de receber muita gente. Até porque, né, era Oliveira dos Brejinhos…
O HOTEL
Mas na cidade havia um hotel. Puxando pela memória, não sei dizer ao certo se pertencia ou não a Márcia o único hotel da cidade. Sei que lá ficamos. Era a primeira vez que ficávamos em um, e até então, hotel era coisa de celebridade. Era eu, portanto, quase uma, ainda mais da capital! Sabedor das limitações financeiras que permeiam a família desde há muito, logo saí de celebridade a menino amarelo: fiquei estupefato com um freezer com latinhas de refrigerantes que tinha logo na entrada. Era lindo. Devia sair uma luz que iluminava o ambiente, um trilha sonora no fundo, “ohhhhhhh.” “Pode pegar um, vamos jantar!” Disse Márcia, sorridente. Corremos os três nos estapeando para garantir a refrescância. “Mas só um, viu?” Ela afirmou, cortando um pouco do barato.
Configurávamos da seguinte maneira: eu, 13 anos, em 3 meses faria 14. Tive um estirão de 18 centímetros no período. No fim de 95, 1,74m, para alcançar 1,92m no fim de 96. Estava ali, portanto, rondando o metro e noventa de pele e osso. Cresci mas não enchi. Era magro, feio, e, como todo bom adolescente que se preze, com uma cara de bobo enfeitada por um ralo e ridículo bigode. Meus irmãos, muitos mais baixos e bastante gordinhos, tinham 12 e 10 anos. Eu era, claramente, um intruso. “Nós somos irmãos!”, diria um dos três, para receber aquele olhar de “ah, mas esse pirulão aí não é mesmo.” Aqueles que se revestiam de pena teciam olhares de “então, menino, deixa eu te contar uma coisa, talvez você não goste do que vou dizer…”
Na casa de Voinha tudo era dividido de maneira rigorosamente igual. Se tinha pão, era um para cada. Biscoito recheado? Três para cada um e não se fala mais nisso. Neste esfomeado (para mim, farto para os mais novos) ambiente socialista, eu era só costelas e meus irmãos eram só dobrinhas.
“Mas só um, viu?” Este aviso era reforçado o tempo inteiro. E somente poderíamos beber no almoço ou no jantar. O freezer automaticamente se transformou no paraíso inalcançável. Era uma tortura. Tão perto, mas tão distante! Estava ali e bolávamos planos: “e se alguém distraísse a recepcionista…”, “e se a gente descesse escondido no meio da noite…”. Mas ao mesmo tempo, era território inimigo. O freezer era a materialização do que nós éramos. Ou seja: pobres. “Você pode ver, criança, mas nunca será seu.” Márcia era o General de boina e chicote, pronta para açoitar os ózados. Não ousamos. Tomamos, obedientes, sempre um em cada refeição. No que se seguiu a toada tradicional, com os mais novos crescendo e eu murchando, cada vez mais magro, cada vez de bigode mais ralo, cada vez mais feio, cada vez mais odiando aquele freezer, cada vez mais sonhando com a morena da novela a me socorrer.
O TRAUMA
Agora não pense que eu deixei de gostar de refrigerante por causa disso, nem que o trauma advém do socialismo imposto. Não, enternecido leitor, acarinhante leitora…
Equilíbrio nunca foi o meu forte. Reconheço as minhas próprias limitações, especialmente as físicas. Ficar em pé (ou sentado) em coisa que tem mais chance de cair, significa que eu vou cair. Feio. Sem nem ter me equilibrado. Já tentei de tudo. Patins (nunca meus), skates (nunca meus), surfe (pranchas nunca minhas), body board (idem), essas modernices como stand up paddle (ibidem), e até mesmo esqui. Certa feita, eu, rei do esqui, fiz até umas aulas. Estava indo bem, eu juro. Melhorando. Mas brasileiro é praga que dá em tudo quanto é canto. Eu descia a longa rampa da estação de esqui aperfeiçoando a dobradura do joelho, a posição dos pés. Quando escuto atrás de mim “olha a frenteeeeeee!” Vinha escorregando desembestado um cearense de Fortaleza, que me deu uma rasteira criminosa, digna de cartão vermelho direto. Caí, corpo inteiro doendo. Gelo entrando onde não deveria. Daquele momento em diante nem posso mais dizer que foi ladeira abaixo, porque sentei na neve no alto da rampa e fiquei observando o povo que descia se estabocar inteiro. Um menino, talvez 6 anos, passou do lado. De pé, era a cara da experiência. Enquanto escorregava em velocidade controlada, colocava seus óculos de proteção na maior serenidade e desenvoltura. Ele, recém-saído das fraldas, olhou na minha cara e disse “Chupa!”. Tá, ok, ele não falou isso. Mas que por dentro eu xinguei até a oitava geração do moleque, ah, eu xinguei.
Acontece que foi em Oliveira dos Brejinhos que pela primeira e última vez eu montei num cavalo.
Cavalo, cavalo, assim, cavalo, não dá nem para dizer que era. Não vamos promover o bicho de categoria. Algo, talvez, como um burro turbinado. Ou, se assim preferir, um legítimo pangaré. Era uma estradinha de terra como todas as outras, plantação de um lado, plantação do outro, nenhuma brotando nada. Respirava-se o ar empoeirado do sertão, debaixo de um sol de rachar. Todos teriam sua vez.
Mas bicho sente o cheiro do medo. Talvez por conta de algum sólido (ou líquido) que é expelido não intencionalmente. Se saía ou escorria não sei dizer, mas na minha cara de bigodinho de abestalhado estava estampada a feição da borrada inevitável. Minha gente, em verdade vos digo: tranquei que não passava nada. O bicho ainda assim sentiu o cheiro e pensou “é ele.” O bicho pongou no cavalo, virou para mim e me mandou subir junto.
Éramos 3 os animais: o cavalo, o gigantesco filé de borboleta agarrado atrás e o bicho que comandaria a rédea. Começou devagarinho. E eu pensando, “nossa, tá tranquilo, tá favorável.” Foi do nada, num piscar de olhos, sem eira nem beira, sem ter nem porquê, sem aviso ou aceno, o sacripanta cravou o chicote no lombo do cavalo, que respondeu instantaneamente, saindo em disparada, numa velocidade estonteante (alô, Caetano!). Nem gritar eu podia, coração tampava a boca, quase pulando para fora. Agarrei no lombo do bicho miserável com todas as minhas forças, e no aperto da vida que que acabaria encontrei religião.
Quando paramos de volta no grupo, eu era a cara do desconsolo, da injúria, da vergonha. Verifiquei onde deveria, para garantir o que me restava de honra. O povo ria de mim se refestelando, sem constrangimento, apontando o dedo.
Voltamos para o hotel. Logo mais o almoço seria servido. Imaginava eu que, imbuída de pena e conforto, Márcia autorizaria que eu tomasse tantos refrigerantes quanto eu quisesse. Qual o quê… “Mas só um, viu?” Apressou-se em dizer ela pouco antes de irmos nos servir.
****
Abertura de Pedra Sobre Pedra
***