Marcival, como de costume, não conseguiu dormir direito. Passou a noite em claro. O calor ajudou, mas a ansiedade explica e se justifica. Levantou reclamando por ter despertado cedo. O sono ajuda a correr o dia qu concentra o ápice da expectativa, aquele quando tudo corre em câmera lenta.
Vestia um short de bater baba, e com ele ficava até chegar a hora. Além do short, vestia seus longos cabelos negros com já alguns fios brancos arrumados num dread do qual cuidava com carinho, os magros músculos definidos e a pele escura que brilha com vivacidade.
O casarão no pé da Ladeira do Carmo, que foi transformado em pensão, palavra chique que quer dizer cortiço, dentro da pobreza gritante do Pelourinho, tinha sinais de desgaste, destes que se amontoam no aguardo da tinta e da reforma bancadas pelo governo.
Mora sozinho, no segundo andar, janela com vista, onde mais gente na dezena divide o piso da porta para fora. Trabalha na Baixa dos Sapateiros por um salário que mal dá para pagar o ônibus que não precisa pegar.
Vive pelos muitos amores que compartilham de sua cama quase diariamente, pela água que merece ser comida nos fins de semana e pelo seu dia, o hoje, a sexta-feira de Carnaval, onde tudo se rearranja e a energia se renova.
Nada conseguia atrair sua atenção. A roupa da noite da sexta de carnaval já estava separada há dias, como fazia todos os anos desde 1993. A camiseta pendurada num cabide, já desgastada, com a letra de Madagascar Olodum, presente que ganhou das mãos de Neguinho do Samba quando ainda era menino recém-saído dos projetos sociais da banda, vestimenta que não tem planos de aposentadoria, apesar do puído, do descolorido, e até de uns buracos de traça. Seu uniforme era marca da permanência, da resistência, da compreensão de significados.
A completar, qualquer short servia, qualquer chinelo servia, até descalço já se viu.
Na rotina, ainda cedo, pouco depois do almoço, segue para a frente da Fundação Casa de Jorge Amado. Ali senta no batente da escada, e fica batendo seus pés freneticamente. Inquieto, sabedor do que se aproxima, levanta, dá uns passos de lado a lado. Cumprimenta a todos que passam e que lhe reconhecem.
As horas passam lentamente.
De segundo em segundo, a hora se aproxima.
A hora em que, desde a concentração, o Olodum invade o Pelourinho com seu batuque, amplificando seu som nos corações de quem se atrever a estar em seu caminho.
Ele olha o relógio, apreensivo.
Galera começa a formar. Ele sorri.
Os primeiros tambores chegam. Todos se cumprimentam. Os primeiros batuques, de aquecimento se ouvem. Cada vez mais gente. O carro de som chega. Vai começar.
Marcival eleva-se em seu posto e cruza até o encontro da praça com a viela que margeia a casa dos tambores até a ponta do Terreiro de Jesus, como se liderar o movimento, indicando os caminhos.
Os instrumentos, agora muitos, tocam em harmonia por um bom tempo. Vão aumentando o volume. Marcival vai sendo incorporado. Abre seus braços de frente para o grupo, como se em oração, absorvendo cada partícula de axé que emana dos repiques, atabaques, do tambor levantado sobre a cabeça para a foto para o jornal e para a filmagem para a TV. Tudo é transe e transa.
O bloco vem descendo e subindo a ladeira, magnífico, poderoso, irresistível.
Para Marcival, é como se ninguém estivesse do seu lado.
Posta-se na frente do trajeto, sorrindo largamente.
Os tambores vão se aproximando, numa procissão de exaltação às raízes, do orgulho negro, da veneração à sua cultura e sua história. A história de tantos Marcivais.
Ele se ajoelha nos paralelepípedos, braços sempre abertos.
De olhos fechados, pode sentir o povo chegando, a música aumentando o estampido que ecoa nos quatro cantos do mundo em segundos. Sente o vento dos movimentos dos toques, cada batida soprando e ressoando em seu peito.
Aceita ser engolido pela massa, pisoteado e transformado em material do cortejo, para fundir-se em outros tantos como ele, iguais em vida, em luta, em fé, em consciência. Para acordar no dia seguinte com sua crença renovada de que a vida vale a pena ser vivida.
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