Cheguei para o bota-fora, senhora vende-tudo, “vou-me embora”. Quase a totalidade do que possuía estava agora com pequenas etiquetas de preço. Livrava-se dos bens que às duras penas amealhou. É preciso muito desprendimento para largar tudo para trás, mesmo que este tudo não seja muito.
Sobre a mesa muitos itens de cozinha, além de outras quinquilharias que se espalhavam pelo chão, sobre a cama e qualquer outra superfície disponível. Um pote de sorvete se disfarçava de tapaué: 50 centavos. Daqueles potes raiz, brancos de tampa vermelha, nascidos para armazenar deliciosa iguaria gelada, que a vida transforma em AirBnB de sobra de feijão. Diz a anfitriã “foi uma amiga minha que botou pra vender, vai que alguém compra.” Vende-se no varejo pedaços da honra por 50 centavos. Havia potes de vidro — pote de vidro é a tapaué que venceu na vida –, um conjunto! É luxo só.
Perdidos entre os talheres, destacam-se dois pegadores de gelo. Encafifado fiquei. Era motivo de muito espanto para mim alguém ter um, quanto mais dois pegadores de gelo.
Não sem um tanto de autocrítica, entenda. Tive um pegador de gelo, com direito a balde de gelo acoplado. Coisa linda, fina e nunca usada, destes pertences que somente param na sua cozinha por ser presente de casamento, tipo faqueiro completo, molheiras e aqueles raladores de mesa a manivela.
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Os maiores vendedores de baldes e pegadores de gelo da história do Brasil devem ser os autores de novelas. Camarada empresário rico chega em casa depois de dia estafante, vai direto para o mini-bar na sala de casa, pesca com seu pegador as pedrinhas congeladas dentro do balde, atira no copo de cristal a ser preenchido com uísque ou qualquer outra bebida com cor de guaraná sem gás, e dá a golada que alivia o sofrimento.
Manoel Carlos, principalmente, deu destaque a outro comportamento burguês-surreal: a espetacular mesa de café-da-manhã. Aquela com a matriarca na cabeceira com o sol nascendo — Lília Cabral ou Regina Duarte, preferencialmente, que possuem a cara de uma classe média angustiada. Na mesa farta, pães mil, doces, frutas, queijos, sucos, café, chá, leite, omelete, comida suficiente para alimentar uma cidade de até 50 mil habitantes. Detalhe no canto, a serviçal atenta para atender aos desejos de bate-pronto. “Uma omelete de ovos caipiras orgânicos sem gema com ricota sem glúten e sem lactose temperada com sal do Himalaia e uma pitada de ervas finas.” “Sim, senhora!”, no que ela faria uma saudação segurando a barra da saia do uniforme, de cabeça baixa em respeito à autoridade e se retirando.
O filho mais velho acorda correndo, atrasado para a faculdade, para o emprego, para o escambau, assim como todos os outros, e somente ela, impávida, gritando: “mas só isso, só um gole do suco? Come alguma coisa antes de sair!” Eles a ignoram e se vão depois do protocolar beijo na testa, para ela retrucar, uma vez abandonada, com a serviçal-confidente “é assim, nem tempo para tomar café comigo têm.”
Quem sabe esses pegadores de gelo fosse a incorporação possível da vida organizada que foge dos problemas financeiros – a não ser que seja MAIS dinheiro – e está mais preocupada com o psicológico, aquela vida tão distante da sua, tratada como a melhor possível. Dramas e dúvidas não escolhem classe social, embora seja muito mais fácil fazer análise em Paris. Talvez ela se veja como a Helena no café-da-manhã, a fartura exagerada contrastando com a secura dos os filhos ingratos e do marido que não conversa. Talvez seu desejo mais profundo seja voltar para casa depois de um dia de trabalho e sapecar o quadrado congelado, derramar sobre ele uma bebida e tranquilizar-se da forma que dá pela labuta diária.
Este gatilho dos desejos repreendidos pela concepção subliminar novelal pode ter disparado a compra do segundo pegador de gelo. Estaria ela na loja, procurando equipar sua cozinha, passa e vê um pegador, “um desses nunca é demais”. Pode ela ter tido vários, três, quatro, cinco, dez, de cores diferentes, de tamanhos diferentes, com garrinhas bonitinhas, liso sem ponta, quem sabe um desenhadinho, outro que prometeu pegada ergonômica… Haveria uma cidade de pegadores, a pegadora-rainha, com as pontinhas tal qual uma coroa, que olharia seus súditos, nobres, mas ainda súditos, todos com suas mesas fartas e sem a necessidade de tocar a comida com as mãos, com seus largos copos cheios de bebida como acompanhamento. Tudo servido em distintas bandejas por gente de luvas.
(A nobreza é brega.)
Pegador de gelo é para ela que nem sabonete ou papel higiênico: nunca é demais ter sobrando, mas deixe faltar um…
Imagino vendo-a chorar, povo comprando, ignóbil, sem dar valor além do preço nas etiquetas, e ela em prantos “posso me desfazer de tudo, mas deles é muito difícil! Não! A Pegadora-Rainha, não!”
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Pergunto, curioso: “Por que você tem dois pegadores de gelo?”
“Oxe! Um foi você que me deu. Veio com o balde, era um conjunto.” – até aqui faz todo sentido, eu nunca tive vocação nem para a bebida nem para novelas; livrei-do mal, amém.
“E o outro?”, insisto.
No que ela responde candidamente, “Peguei sem querer na loja.”
Sem querer… Droga. Na minha cabeça era muito mais legal.
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