Qual extensão da irracionalidade de um amor incondicional? Qual a extensão da estupidez daqueles que se veem sem alternativa e vislumbram o “fazer alguma coisa” em detrimento do fazer a coisa certa? Qual o tamanho do desvio de conduta e traumas psicológicos severos que faz com quem alguém efetivamente acredite que o “se não pelo amor, vai pela dor” funcione?
Havemos de concordar: esse negócio de torcer é tarefa árdua. Envolve sentimentos que falam na nossa alma e ajuda a nos definir. É geografia, é limite. E como dói nos vermos feridos em nossa honra de quem tanto oferece e pouco recebe. No cotidiano de vidas sofridas, o futebol é o refúgio, o escape. O que acontece quando nos tiram o orgulho de uma escolha da qual não podemos fugir?
Deve estar aqui uma das maiores dores do torcedor apaixonado. Podemos nos desfazer de casamentos, abandonar empregos que nos fazem mal, nos afastarmos de amizades predatórias… Mas como empurrar para longe o clube que desde cedo fomos condicionados a amar? Na impossibilidade de atacar a origem do problema, sobra a segunda melhor opção na cabeça dos desprovidos de racionalidade e ódio demais para raciocinar além de uma atitude intempestiva: focar nos atletas o alvo de sua ira.
Raiva parece ser a emoção latente desta época. Gente que precisa de alguma forma extravasar suas frustrações que se acumulam empilhadas em prateleiras frágeis, prontas para cair com espalhafato. Aos mais desprovidos de capacidade cognitiva, vê-se a necessidade de gritarem sua insignificância individual camuflada na covardia da ação em grupo. Está na força bruta o único recurso dos ignorantes, única válvula para se fazerem relevantes. No caso do futebol, baseiam-se no argumento do “se não for pelo amor, vai pela dor”. Esperam o medo como resposta, a cabeça baixa em reconhecimento imposto pelo peso do autoritarismo.
Assistimos recorrentemente a invasões de CTs de ditos torcedores, por vezes até vandalizando patrimônio e roubando bens do clube que dizem amar. Esta semana, vimos torcedores se deslocarem ao aeroporto no embarque do Flamengo ao Nordeste para enfrentar o Ceará, para agredir e intimidar os jogadores. Repórteres e equipes de imprensa acossados e objeto de preconceito. Cenas lamentáveis de uma série recorrente.
Não terá sido a última vez, porque acéfalos sem resguardo por consequência que se sentem feridos em sua honra brotam de acordo com as circunstâncias. São muitos. No ying-yang do equilíbrio universal, se há, numa ponta, aqueles que torram suas economias para acompanhar seu clube em todas as vias com dedicação sacrossanta e que respeito o trabalho alheio, há a ponta oposta.
Os efeitos, normalmente, são drásticos e extremamente prejudiciais às agremiações. Perdas de mandos, multas, atletas que vão embora com contratos rompidos na justiça, indenizações e reparações. Prejuízo na veia saltada da garganta do que vocifera, sabedor da impunidade garantida.
Uma das condições que diferenciam os seres humanos dos animais é o que se chama de “teoria da mente”. Segundo definição, “é a habilidade de atribuir e representar, em si próprio e nos outros, os estados mentais independentes e de compreender que os outros possuem crenças, desejos e intenções que são distintas da sua própria.” Diz respeito também a projetar cadeias de reações e de adaptar seu comportamento de acordo com o risco existente.
Numa sociedade em que nos fechamos na bolha de informações com as quais concordamos, perdemos, pouco a pouco, a capacidade de agir em grupo. Vamos destroçando as condições necessárias para que a teoria da mente se desenvolva. O seu não-desenvolvimento pode ter três significados: são animais irracionais; são pessoas com doenças mentais que alteram esta capacidade; ou são pessoas imaturas, incapazes de controlar suas emoções e atos. No caso dos torcedores-das-cavernas, vislumbro um caso raro e repugnante: uma metamorfose improvável e amedrontadora, pois combinam os três significados.
Artigo publicado na página 2 do Correio da Bahia em 30 de abril de 2018. Link aqui.
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