“Se a educação brasileira fosse uma vacina, qual seria sua taxa de eficácia?”
Se essa pergunta fosse feita alguns meses atrás, dificilmente alguém entenderia do que se trata, o raciocínio que a fundamenta, e muito menos se arriscaria a dar uma resposta. Hoje, devido à massiva disseminação de informação nas redes sociais, e à forte onda de desinformação que toma conta da nossa sociedade, discute-se abertamente – com a mesma propriedade de quando se fala de futebol – temas como autorização para uso emergencial, taxa de eficácia e imunogenicidade. Chega-se a ter uma espécie de torcida organizada para esta ou aquela vacina, como se fossem times concorrendo pela “Taça Libertadores da Pandemia 2021”. Embora não possamos nos esquecer do time dos contrários à vacinação, que corre por fora liderado pelo nosso Ignorante-em-Chefe.
Diante de toda a polêmica criada ao longo das últimas semanas envolvendo a questão da vacina, e da iniciativa da Papo de Galo_ revista em falar sobre o assunto, comecei a pensar no percurso que trilhamos, como sociedade, até chegar nesta situação tão esdrúxula. O que fizemos – ou deixamos de fazer – para que brasileiras e brasileiros não só passassem a desacreditar da ciência, mas lidassem com isso sem qualquer tipo de pudor ou constrangimento. Inevitavelmente, a educação emergiu
como eixo central da discussão. Como se trata de um tema extremamente complexo, resolvi restringir um pouco mais, e pensar em como nós, docentes, também nos tornamos corresponsáveis por um cenário tão dantesco.
Quem já se debruçou sobre a história da humanidade sabe que o fenômeno que estamos vivendo faz parte de um ciclo contínuo: há momentos de progresso científico e tecnológico, e há momentos de retrocesso. Ainda que não se possa cravar oficialmente que estamos numa nova “Idade das Trevas”, pode-se dizer que vivemos um nítido contrassenso: a sociedade do século XXI está se tornando mais ignorante justamente quando há excesso de informação. Não seria arriscado dizer que estamos num processo de desestabilização comparável à causada pelas descobertas de grandes riquezas minerais, ocorridas em diferentes momentos históricos nas diversas regiões do planeta.
Seguindo esse raciocínio, a descoberta dessa riqueza chamada “informação” está causando a desestabilização da sociedade brasileira justamente por não sabermos lidar com tanta riqueza ao mesmo tempo. Não estamos preparados para lidar com tudo isso e, definitivamente, não faz parte das alternativas retroceder no tempo ou reduzir a quantidade de informação disponível. Teremos que aprender o potencial que temos nas mãos e as alternativas de explorá-lo durante o processo, basicamente seguindo a lógica de trocar o pneu com o carro andando. Para isso, a ajuda docente é fundamental.
Porém, segundo dados oficiais, cerca de 30% dos cidadãos brasileiros são analfabetos funcionais, ou seja, não conseguem interpretar adequadamente o que leem e, consequentemente, acompanhar raciocínios complexos. Considerando estes índices, numa extrapolação grosseiramente simplificada, temos 30% de nosso corpo docente sem condições de colaborar com o desafio de lidar com o excesso de informação e com a desinformação. E o que é mais preocupante: tornando a tarefa ainda mais difícil, justamente por estarem na linha de frente e por serem formadores de opinião.
Embora seja um assunto controverso, não se pode deixar de ter em mente que a concessão de diplomas sem preocupação com a qualidade do ensino – fenômeno que ocorre no Brasil desde o início do século XXI – traz agora a sua pior consequência: a formação sistemática de pessoas e profissionais (inclusive da área educacional) sem a capacidade de refletir sobre a informação que recebem. Neste cenário, mesmo que fosse atendida a reivindicação da classe por melhores salários, a dura realidade é que não seria possível ter melhoria imediata na qualidade de ensino. Por outro lado, a experiência da Coreia do Sul aponta o horizonte, ao mostrar que posicionar os melhores salários para a profissão docente tem o efeito de atrair profissionais mais bem-formados, esse sim um fator que teria efeitos – ainda que de médio e longo prazo – na formação de toda a sociedade.
Iniciar uma transição dessa magnitude implicaria numa grande concertação nacional, na qual a classe política e a sociedade se empenhariam juntos na melhoria da qualidade da educação no Brasil. Infelizmente, é aí que a coisa começa a dificultar, já que o principal expoente da classe política nacional preenche todos os requisitos para ser chamado de Ignorante-em-Chefe. Num esforço de análise, pode-se dizer que sua ascensão ao poder é efeito colateral da política educacional das últimas duas décadas, justamente porque parte da geração que vem saindo da Universidade desde o começo dos anos 2000 é aquela que, aliada à geração mais velha que não têm educação, vem lhe dando suporte político.
Pessoas sem capacidade de lidar com a informação cometem atrocidades as mais diversas. A Alemanha dos anos 1930 nos ensinou bem como o domínio do aparato comunicacional, aliado à falta de pensamento crítico, causa efeitos desastrosos à sociedade. No caso do Brasil dos anos 2020, discutimos vacina como se fosse futebol, políticos não-médicos prescrevem medicamentos sem eficácia comprovada e reiteradamente não assumem a responsabilidade de seus cargos no combate à pandemia, recebendo apoio inclusive de quem perde seu ente querido.
Neste país arrasado pelas milhares de mortes diárias, precisamos ainda mais de docentes que sejam capazes de associar a sua disciplina ao momento que vivemos: precisamos que professores de português analisem com seus estudantes a morfologia e a diferença entre palavras como “epidemia” e “pandemia”, “vacina” e “imunização”; que professores de biologia expliquem o papel dos anticorpos na manutenção de nossa saúde, e como as vacinas colaboram com nosso organismo; que professores de matemática expliquem se a disseminação de um vírus é um fenômeno de progressão aritmética ou geométrica; que professores de história falem sobre a “Revolta da Vacina” no Brasil, e sobre como as pestes e pandemias afetaram o mundo que conhecemos…
Enfim, precisamos que a multidisciplinaridade real – aquela que era chamada antigamente de “erudição” – seja a fonte da sabedoria que tanto precisamos para combater a ignorância que se propaga pelos grupos de aplicativos sociais. Basta lembrar que os grandes ícones da ciência mundial eram criaturas eruditas, multidisciplinares: Leonardo da Vinci, por exemplo, devido aos seus talentos e conhecimentos artísticos, conseguiu inúmeros feitos em seus estudos da anatomia humana, e vice-versa. Não nos é suficiente, neste momento, que o docente saiba o que está no livro didático mas não consiga estabelecer as conexões com outras áreas do conhecimento, refletindo os desafios do mundo real. Precisamos responder aos nossos estudantes, com convicção, a clássica pergunta “Pra que isso vai servir na minha vida?”
É preciso acreditar e trabalhar para que a vacina recém-chegada nos permita vencer a COVID-19, e que recuperemos a vitalidade necessária para vencermos a ignorância e a desinformação. Não será uma tarefa fácil, ainda por cima com um ignorante na mais alta posição da República. Mas como nada é por acaso, vale a pena recordar que um dos legados da Revolução Constitucionalista de 1932 foi a criação da Universidade de São Paulo, e que seu lema Scientia Vinces quer dizer “Vencerás pela Ciência”.
Artigo de Durval Lucas Jr para a Papo de Galo_ revista #10, de 29 de janeiro de 2021, páginas 64 a 67.
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