Zé Mário não aguentava ver sua Aracaju invadida por festas importadas da Bahia. Tradicionalista conservador, bicho retado que só a gota, cabra macho, sim senhor, para ele sé existe uma festa que se preze por aquelas bandas: o São João.
Todo ano era a mesma rotina. Virava o ano e tocava o Zé a reciclar seus cartazes, panfletos, camisetas, faixas, letreiros, gritos de guerra. A sala do pequeno apartamento que morava com sua esposa, Nelita, ficava sem espaço para andar por causa do aficionado que ele era.
Ela já há alguns anos desistira de lutar contra. No começo, ia junto para a linha de frente batalhar nas trincheiras. Com o tempo, percebeu quão inócuo tudo parecia ser. Passou a sugerir que ele largasse mão de besteiragem, depois com mais veemência, e na teimosia do marido, desistiu foi ela de mudar a cabeça do homem.
Eram quase duas semanas de resmungos e planos infalíveis para, desta vez, destruir o Pré-Caju de vez!
― Esse ano eles se veem comigo! Me aguardem!
Um dia antes da festa, amontoava tudo o que fabricara na antiga Belina e montava acampamento na entrada. Nelita já conhecia o enredo: durante 4 dias, o marido sumiria, talvez até pegasse um ou dois dias de cadeia, ia voltar rouco de tanto gritar, dedos ensanguentados das farpas, corpo maltratado pelas surras que invariavelmente levava.
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Pobre Nelita.
Foram anos de preparação do plano diabólico e maquiavélico de Zé Mário. Plano que exige disciplina, insistência e uma paciência danada.
Quando ainda jovem no interior, Zé Mário foi para a capital ficar na casa de um tio para passar um réveillon. Sim, o São João era a principal festa da cidade, como há de ser em toda cidade do interior nordestino. Ficou por mais tempo, ganhou ingresso pro Pré-Caju e ficou é doido com a coisa. Ele bebeu, dançou, beijou, meteu, dormiu na sarjeta, brigou, correu. Viveu.
Sabe como é, quem nunca comeu melado, quando come se lambuza.
Dali a mais um tempo conheceu Nelita, que não era muito chegada a Carnaval, e dele queria até uma certa distância. Moça pura do interior. E Zé Mário ali se raciocinando todo para decifrar, por conta do amor por Nelita já nele alojado, como é que faria para aproveitar o que podia naqueles 3 dias e manter sua paixão.
Você há de admirar Zé Mário e sua perseverança.
Foram quase 10 anos até que a mulher finalmente desse de ombros e já nem se preocupasse mais com o tempo fora nem com a preparação. Primeiro, seria preciso envolvê-la. Depois, exagerar para que ela perdesse a vontade. Depois, quando o recorrente fosse certeza de que tudo sairia como antes, roteiro que ela já conheceria, então, para que ela se avexar?, se entregaria ao seu melado sem culpa e sem preocupação.
Ao chegar na entrada do Pré-Caju, armava seu mundaréu, porque álibi demais nunca é pouco, e de posse de seus ingressos, ele bebia, dançava, beijava, metia, dormia na sarjeta, brigava, corria. Vivia.
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Eis que, ele remoendo-se em preocupação deitado na cama, Nelita pergunta:
― Quê que é, homem? Essa cara de desenxabido?
― Tô achando é pouco.
― O quê, criatura?
― Pré-Caju. Quer saber? Vou é acabar com Salvador!
Num pulo já foi para a sala, a arrumar seus preparativos.
― Eles que me aguardem! Duas semanas, viu?
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Pobre Zé Mário.
Nem sabia do plano maligno de Nelita para se livrar de seu marido e subir as ladeiras em Olinda, onde o frevo invadiria cada pedaço de sua alma.
Você há de admirar Nelita e sua perseverança ainda maior.
Falou ela, dando de ombros, mas sorrindo por garantir o investir na passagem rumo a Pernambuco.
E nessa de um achar que era mais esperto que o outro, seguiam cada qual a seu destino no Carnaval, para se entregarem à esbórnia e à libido, numa eficaz artimanha para manterem a sanidade e o casamento, porque sempre que voltavam, abundavam beijinhos carinhosos e juras de amor eterno.
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