A esta altura, é dizer, à altura em que me leem os raros leitores (porque leitores, ainda que raros, fazem isso: leem), o campeonato brasileiro já terá se resolvido. “Já”, evidente, é modo de dizer, impropriedade que se justifica apenas pela inaptidão do cronista. Uma redação escrutinosa recomendaria o vocábulo “enfim” (além de evitar palavras de questionável existência, como escrutinosa), uma vez que o campeonato de 2020 somente se decide quando já andamos encrencados em quase março de vinte e um.
Falando nisso, já perceberam que, a partir de vinte e um, soa novamente correto tratar do ano somente por decimais e unidades? Assim ó: vinte e um. Não dois mil e vinte e um. Era assim no século passado (segundo me contaram): comemorava-se a chegada de noventa e dois, e não do ano da graça de MIL NOVECENTOS e noventa e dois.
Não havia esse tipo de intimidade até o ano passado, senão repare. Soa estranho falar em “olímpiadas de vinte” (vai ver foi por isso que nem teve), ou lembrar da “copa de 02”, que a gente não fica sabendo se é o torneio de futebol ou a cozinha de Carlos Bolsonaro, desculpem o mau vernáculo.
Outro bom exemplo, esse do século passado: ninguém diz golpe de mil novecentos e sessenta e quatro, mas golpe de sessenta e quatro. Há quem fale, é claro, em revolução de sessenta e quatro, mas aí devido perturbações de gravidade maior, que refogem às meramente semânticas.
Enfim, vinte e um é nosso bróder na mesa de bar, dois mil e vinte é nosso chefe na festa da firma, que você tá bêbado, gravata na testa e o escambau, mas ainda tem de chamar de senhor.
Mas dizia eu, antes de ser abruptamente interrompido por meus próprios pensamentos, que, a esta altura, quase correndo março de 21, o campeonato de 2020 terá se decidido, em uma rodada de quinta à noite, com São Paulo x Flamengo e Inter x Corinthians, gaúchos e cariocas disputando o título.
Ocorre que, circulando a revista na sexta-feira, seria obrigação do cronista minimamente responsável acompanhar ambas as partidas até o final, uma ao vivo, outra em repeteco, para só então, enfunado nos frios ventos da madrugada, iniciar seu texto. A crônica, sendo a mais jornalística das formas literárias (ou a mais literária das formas jornalísticas), deve estar sempre em cima do fato, uma espécie de Comandante Hamilton em letras de imprensa. O leitor quer ibagens, já diria Datena, e o cronista as pinta com palavras.
É evidente que este escriba cumpriu semelhante obrigação, e, se o texto é vazado em termos ambíguos, e às vezes – somente às vezes – perde-se em digressões envolvendo temas aleatórios, como o golpe de 64 e o Comandante Hamilton, é porque crônicas são assim mesmo, e tais abordagens serão certamente amarradas ao final, é confiar.
Mas, feito o nariz de cera, e já entrados em quase quinhentas palavras, toquemos o assunto: que título, senhores. Que título!
Algo peculiar ocorreu nesta noite de quinta-feira. Foi a primeira decisão de pontos corridos envolvendo não apenas rivalidades, mas intrigas, triângulos amorosos e afetos mal resolvidos, Maria do Bairro, por que choras?
Olhe que não é de meu feitio fazer maledicência, mas é certo que TUDO COMEÇOU com Rogério Ceni, maior ídolo da história do São Paulo, chamado mito quando o termo ainda não havia se desmoralizado, dizendo por aí que torcida boa, boa mesmo… era a do Flamengo!
A torcida paulista, enjeitando as guampas que menino Ceni insiste em lhe impor, azedou, é claro, a ponto de preferir ver o diabo abraçado com Fernando Diniz do que assistir ao Flamengo campeão no Morumbi, sua própria casa. Daí que era mesmo esperado que o São Paulo, que não jogaria por título, no entanto jogasse por sua honra.
De outro lado, Abel Braga, técnico do Inter, escorraçado do rival Flamengo em 2019, e apontado pela crônica esportiva, com alguma razão, como exemplo de técnico ultrapassado, ainda mais em contraposição ao sucesso de Jorge Jesus, que lhe sucedeu.
Vejam: Abelão é provavelmente a figura mais simpática do futebol brasileiro. Paternal, bonachão, apreciador de uns gorós; um crossover de Muricy e Joel Santana. Tendo passado pelo inominável – a perda de um filho -, há a nítida impressão de que os jogadores o adotaram como pai. Pode perceber: começo de jogo, até a boleirada adversária faz questão de ir até o banco cumprimentá-lo.
Em resumo: você passaria uma tarde tomando cerveja com Abel; agora tente lá tomar uma única taça de vinho com Rogério, depois me conte a encrenca.
Abelão é a simplicidade do “vinte e um”, Rogério Ceni é o formalismo de “dois mil e vinte”, eu falei que ia amarrar essa desgraça.
Bom, acontece que Abelão, em uma improvável reviravolta, descobriu que Rogério Ceni era seu legítimo irmão voltou ao Inter, emplacou uma sequência improvável de nove vitórias e iniciou a rodada podendo tirar o título do Flamengo, o mesmo que o esnobou.
Então eu pergunto: com esses personagens, com esse enredo, com esses plots twists (que é a expressão em português para reviravolta), poderia haver melhor desfecho do que aquele verificado na noite de ontem?
Eu duvido, honestamente: a taça está em excelentes mãos.
E, isto sendo dito, peço licença e me recolho; já é madrugada de sexta, e essa análise minuciosa dos jogos, em cada um de seus lances, já começa a me fatigar o espírito; fica de alento a certeza do dever cumprido.
Que título, senhores. Que título!
Crônica publicada na Papo de Galo_ revista #12, de 26 de fevereiro de 2021, páginas 56 a 59.
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