Numa viagem de avião é quando eu me reduzo à minha insignificância: eu estou mais para ninguém do que para tudo. E o paradoxo se faz: somos quase ninguém no todo, mas o meu todo sou eu. Porque se não somos ninguém, se não significamos, o que estamos fazendo aqui mesmo?
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Viajar é um dos maiores prazeres que eu tenho. E quem não gosta? A bem da verdade, conheço um que não gosta. Diz ele que se não pode ter alguma coisa todo dia, nem quer experimentar. “Que vida triste”, penso de primeira, para depois me dar conta de que cada um sabe do seu e ponto final. Eu sei, portanto, do meu. E sei que gosto de viajar, aos montes, que muita gente também gosta. E quem não?
Divirto-me com deslocamentos de todo tipo. Neste 2017 fiz uma viagem de férias de carro saindo de São Paulo, passando pelo Rio, Búzios, Vitória, Trancoso, Vitória de novo, Ouro Preto, BH e, ufa!, São Paulo. Gastamos os pneus do carro que nem tenho mais, e foi maravilhoso. Lá pelo 2002 fui acompanhar uma amiga que faria sua matrícula na Unesp de Franca e que não queria ir sozinha. Fomos e ao chegar lá, cinco horas depois, nos demos conta de que nem ligamos o rádio. O mesmo aconteceu quando com outra amiga, quando seguimos para o casamento do qual seríamos padrinhos em São José do Rio Preto. Foram outras cinco horas mais de estrada, sem nem um pio saindo das caixas de som do carro. Papo vai, papo vem, sem hora para acabar, ou melhor, tem hora, que é quando a gente chegar, ou tiver fome ou sede.
Nunca fui de trem daqui a ali, vendo passar o acolá pela janela. Trens metropolitanos não contam neste cenário, obviamente. Já de ônibus, nossa, muitas vezes.
Tampouco embarquei num navio para cruzar mares e oceanos. Confesso ter um certo preconceito com navios. Vejo um monte de gente brega brigando pelo camarão no buffet, um elevador com porta de violino, noites à fantasia e show do Roberto Carlos. Nem ir embora eu poderia, que desespero! Seria uma penitência forçada, equivalente de algum círculo do inferno de Dante ou de uma reunião de apoiadores de Bolsonaro. O horror! O HORROR!
Meu ex-sogro fez uma viagem pelos canais franceses num barco alugado e navegava pelas águas calmas do interior, ultrapassando eclusas, com passeios de bicicleta nas margens do rio e comidas típicas. Se é para viajar de barco, este modelo muito me apetece. Esta cena me fez lembrar de certo ano novo passado em veleiro na região de Paraty-Angra dos Reis, no ano de não-sei-quando. Sofríamos com a nossa caixa de gelo que chamávamos de geladeira, honrando o nome alemão da coisa. Todo dia era trabalho de limpar, arrumar, porque, tal qual o nome sugere, era tão somente uma caixa com gelo que refrigerava o que quer que colocássemos lá dentro. Era simples, como havia de ser toda a estrutura do barco. Dormi numa cama na qual não cabia, e quem se aventurasse na cama de cima do beliche sofreria com o teto um palmo acima do nariz. Não era um quarto, era um sarcófago. Fomos felizes, os tantos casais que ali estavam. No que eis que na noite do ano novo, observando de longe as beach parties (porque festa metida a gringa tem que ter nome em ingrêis) que tomavam conta da areia. Barcos de toda espécie nos saudavam, em escala infinita de luxo, do nenhum ao extremo. Num deste que se aproxima do extremo – um deck traseiro comportando jet ski, que acinte! – um garoto, uns 12 anos, com cara de entediado e emburrado, jogava video-game numa TV de plasma de 42 polegadas. Na cozinha, geladeira side-by-side. Que disparate! Nosso esquema era raiz, o do garoto vida mansa, Nutella.
Outros meios de transporte alternativos, ao mesmo tempo, foram solenemente ignorados porque o tempo passou. Charretes, cavalos, qualquer modo de tração animal.
Dos que ainda não aproveitei, cruzar a América de moto é um desejo que não cessa. Quem sabe um dia?
E, claro, viagens de avião. Apesar do aperto provocado pelo diminuto espaço reservado a pessoas com alguma espécie de insuficiência vertical, eu aproveito para reorganizar muitas coisas. Levo o livro que está no meio e quero continuar lendo. Escrevo um texto que foi começado. Ouço música para passar o tempo. Durmo quando dá – e minha tática consiste em praticamente ficar sem dormir na noite anterior para que eu possa desmaiar na poltrona. Tem funcionado, fica a dica.
Neste processo de reorganização das ideias, uma cena sempre me recoloca no patamar da minha insignificância. Se dá no processo de aproximação do aeroporto de chegada. Numa altura em que as luzes da cidade não são mais estrelas a anos-luz. Num ponto em que as vias são artérias pulsantes, em que os carros vão. Há uma linha que separar a realização da nossa irrelevância no mundo. Quando muito no alto, não estamos em contato com a vida lá embaixo. A distância apaga as impressões de magnitude do todo, somos, no umbigo, o máximo visível. Na medida em que descemos, vou me aproximando da realidade nua e crua: sou nada. Vejo as ruas já mais de perto, mas ainda não tão perto em que o um, aquele um carro atravessando a rua, seja tão gigantesco no meu olhar que eu me veja, uma vez mais, como o um mais relevante da vida. Existe a linha em que se atinge o nirvana da percepção, quando não há outra conclusão a não ser entender o quanto nada represento. Quando nas alturas, o um se perde na vastidão e sobra apenas o meu umbigo; quando no solo, o um sou eu. Existe a linha, o portal da verdade, aquela porta que se abre para compreendermos que, como disse o Mario Sergio Cortella, somos o vicetreco do subtroço. A gente não é nada. A gente está aqui de passagem. Em cada carro, em cada residência e salas e baias naquele mar de edifícios e casas, há uma vida que se preocupa, que paga contas, que tem preocupações. Sou um destes tantos, mais um, apenas um.
Mas este um sou eu, cara. É paradoxal, mas é inevitável: a peça central do meu mundo sou eu. Mesmo eu não sendo nada. Mesmo eu sendo o vicetreco do subtroço.
É quando se visualiza a linha que cada um lá embaixo é um mundo. Não somos mais pessoas, seres humanos. Somos uma junção de mundos andando batendo cabeça pela vida tentando arrumar sentido, caso contrário, estaremos todos loucos. É quando eu me reduzo à minha insignificância: eu estou mais para ninguém do que para tudo. E mais uma vez o paradoxo se faz: somos quase ninguém no todo, mas o meu todo sou eu. Porque se não somos ninguém, se não significamos, se afinal somos o vicetreco do subtroço, o que estamos fazendo aqui mesmo?
Somos, no entanto, seres sociais. Existimos para valorizarmos o eu, mas sem desbalancear a relação com o todo. Gravitamos entre a magnitude da nossa cama com a inquietude do nada lá fora. E cada vez que eu cruzo esta linha, mesmo que depois eu tenha que voltar a ser o eu-que-sou, com todas minhas características e vícios, eu me espanto. A gente esquece com facilidade o nível real de nossa representatividade. Este portal me reencaixa. E ajuda a que, cada vez que os carros já ficam grandes demais e apenas o um se vê e que meus pés tocam no chão e a terra me ampara acomodando a minha inexistente grandeza, eu me esforce para me tornar alguém que construa uma relação com o mundo em que eu absorva o que ele tem para oferecer, à sua maneira. Em que o eu no todo seja apenas mais um, em que meu umbigo não seja aquilo que está tomando integralmente meu campo de visão. É nesta reflexão e nesta condição que eu me expando, derrubo fronteiras, e por um breve segundo que seja, me faço um pedaço do mundo de cada um.
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