Ele dormia profundamente quando o celular apitou às mais de duas horas da manhã. Noite alta corria em silêncio, o que amplificava o barulho do toque a níveis insuportáveis. No visor, sua namorada, que sem perder tempo avisa, “estou indo praí, precisamos conversar.” Entendedor do que um “precisamos conversar” significava para um relacionamento, pôs-se a esperar cochilando.
Havia pouco tempo que estavam juntos, mas era uma relação intensa. Destas que não tinham muitos percalços ou discussões, trocados por uma afinidade intelectual e física fora do comum. Entendiam-se no olhar, no toque, nas palavras. O que não quer dizer que não era sem problemas, novos que eram. Havia, e há algum tempo, embora pouco, que ela, principalmente, demonstrava sinais de que algumas coisas eram desconfortáveis.
De posse de sua chave para o apartamento dele, ela entrou. Seguiu até o quarto onde ele não mais dormia, pois reacordou com o tilintar das chaves, o girar da engrenagem e o ranger da porta. Encontrou-o sentado na cama. Não quis beijá-lo. Andava ansiosa, de lado a lado, olhando para o chão para encontrar a resolução necessária que a levaria até o fim de seu objetivo. Uma coisa é desenhar na cabeça o que vai ser dito e como, outra totalmente diferente é verbalizar.
“Eu não gosto da pessoa que eu sou quando estou com você. A gente tem que terminar.” As palavras saíram duras, aos tropeções. Nela, o semblante de um certo orgulho aliviado por ter se colocado para fora o que lhe congestionava a alma.
Nele, a faca da crônica anunciada a romper-lhe o peito, pois mesmo que já se conheça o final, menos dolorido não será. Lembrou-se da primeira vez que a viu, “vou casar com essa mulher!”, vaticinou, ingênuo. Sentia na pele o que na memória se instalava; o encontro discreto de seus dedos, o primeiro toque; os cabelos entrelaçados nos seus; nos lábios o gosto de seu beijo e de seu corpo.
O argumento, no entanto, era infalível. Sabia ele, pelo couro marcado a fogo da experiência, o mal que significava não gostar de quem você é dentro de uma relação. Procurou afastar-se de si e transpor-se à pele dela. Que dor haveria ela de ter a lhe maltratar a carne! No afastamento, cobriu-se de racionalidade, tanto quanto foi capaz de amealhar.
“Sua decisão está tomada?” Perguntou ele.
“Sim.” Afirmou ela, peito inflado.
“Então não há nada que eu possa falar.”
As palavras, ao contrário das dela, saíram mansas e sem pressa. Se para ele dizer aquilo foi surpreendentemente natural, via-se nela a dor pelo peso que elas possuíam. Teriam tido para ela o mesmo peso do não gostar de ser quem é quando com ele.
Estavam ambos certos. Ela pelo desconforto que externava, algo que lhe machucava, que lhe tolhia as ações e criava uma personagem que não desejava interpretar. Ansiava por ser livre, leve, solta, como todo relacionamento deve ser. Ele pela racionalidade que foi capaz de construir, não estendendo a conversa para que pudessem se agredir ou se machucarem, para que discussão não virasse. Respeitou e aceitou sua vontade.
Ao mesmo tempo, no entanto, estavam ambos errados. Na surpresa pela racionalidade das palavras dele, sua expressão havia se transformado de resolução para o medo. Queria ela que ele lutasse por ela, que ele se ressentisse, se indignasse de alguma forma. Queria, no mínimo, uma reação mais emocional, mesmo que aquilo a desmontasse. Não desejaria ela, em seu íntimo, então, que ele a desconvencesse e fizessem amor calidamente na madrugada silenciosa da grande cidade?
Estaria ele errado também por não perceber o grito por socorro que ela emitia com as palavras erradas, mas a expressão corporal correta. Haveria de adaptar sua posição, oferecer-lhe abrigo, abraço, um “Eu te amo. Vamos entender como podemos resolver isso juntos?”
Se estavam certos na via racional – com argumentos indestrutíveis – falhavam miseravelmente na esfera da paixão. Amavam-se profundamente. Deixaram-se, vencidos pela via da lógica em redoma, escorregando pelos dedos todas aquelas sensações que passaram a apenas suspirar em lembrança a partir dali.
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