A chegada de Mano Menezes ao Bahia é mais um capítulo numa evolução contínua do futebol do Nordeste. Evolução que enfrenta inimigos poderosos, que atuam, desde a invasão do Brasil, para subjugar a região, renegando-a à falaciosa imagem de coitadismo e incapacidade.
Diz-se: “É o Nordeste que não sabe votar”, embora tenha sido a única região a rejeitar o autoritarismo em 2018; “É o Nordeste que vive para o assistencialismo”; “É o Nordeste o berço da preguiça”. Tudo isso é resultado de uma exibição quase exclusivamente caricata nas representações nacionais, não apenas na imprensa, mas também na educação básica e mais.
Abusando dessa premissa, aqueles que pretensamente querem agradar o Nordeste, vestem chapéu de vaqueiro para construir relação de proximidade e inauguram trechos de transposições, o que mexe com o imaginário da seca. Enquanto isso, turistas postam fotos sorridentes nas praias do litoral, declarando um amor sem lastro. Mas, por outro lado, a comida é “pesada”, coentro é abominável, religião de matriz africana é coisa do demônio, o sotaque é “engraçado”, os símbolos históricos são anedotas, e os pequenos preconceitos se espalham, no dia a dia, nas palavras e, por óbvio, nos profissionais do futebol e na imprensa.
Há, portanto, uma visão de atraso impregnada no inconsciente coletivo nacional, narrativa detidamente fortalecida desde o extrativismo do Brasil Colônia, passando pelo abandono completo com a capital transferida, restando somente a subalternidade do bagaço que tem que saber o seu lugar, que deve se recolher à sua insignificância. Do que se extrai o suco do reacionarismo espúrio: se o Sul e o Sudeste são o motor da economia e o Centro-Oeste é o celeiro do mundo, estão ali Norte e Nordeste apenas para atrapalhar o desenvolvimento do Brasil do futuro.
Como escrevi em crônica há algum tempo, o Brasil não é o país do futuro; o Brasil é o país do futuro do pretérito.
Assim, o que vem e é do Nordeste, suas cores, símbolos e tradições, são amplamente desconhecidos, tratados como algo exótico, esta palavra carregada de preconceito que reduz a complexidade histórica e a plurietnicidade a algo que caberia, talvez, em um zoológico.
Mas, apesar da perversa falta de visibilidade nacional, nós, nordestinos, que construímos com suor e sangue estas mesmas megalópoles que querem nos calar, levantamos rincões de proteção ao que é nosso. Não baixamos a cabeça em aceitação a quem quer nos fazer menores. Empenhamo-nos, como instinto de sobrevivência, num esforço contínuo de resistência. Caímos, nos levantamos, sacudimos a poeira e embrutamos as raízes, porque o desfazer alheio é, sobretudo, apagar povos e gentes do mapa para impor uma maneira “correta” – imbricada em violência e racismo – de ser.
Nas insurgências, incorpora-se gradualmente o racional de que, na ausência de meios efetivamente nacionais, criemos e apoiemos os nossos. Atuamos nas trincheiras para evitar o disfarce do sotaque para amplificar aceitação. E clamamos pelo lugar de direito: a igualdade de condições.
A chegada de Mano tem valor símbolo significativo por não ser caso isolado na região. Ela vem junto de uma maior migração de jogadores, de melhor equalização de orçamentos, de reconhecimento de crescimento e importância. Então, bate a dúvida: se mesmo contra ação de esquecimento forçado o Nordeste cresce e aparece, qual é o seu limite? Até onde ele pode chegar?
Por enquanto, a mensagem é clara: respeitem o Nordeste. Se há um Brasil do futuro, ele é aqui. O jogo agora é outro.
Gabriel Galo é escritor
Foto: Felipe Oliveira / EC Bahia
Artigo publicado na edição impressa e no site do Correio da Bahia em 14 de setembro de 2020. Link AQUI!
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