Um dos maiores mantras da liberdade de expressão é aquele que afirma que “toda opinião deve ser respeitada”. Esta é, entretanto, uma distorção do que significa liberdade de expressar-se, que é a possibilidade de externar abertamente o seu pensamento. O que não significa que o seja falado deva ser aceito ou respeitado.
Estamos vivendo uma época em que, em nome de uma pretensa pluralidade, opiniões infundadas são difundidas e analisadas como se válidas. Está escondido neste debate aparentemente amplo o perigo que deturpa a ética do diálogo. Ao equalizar-se, por exemplo, ciência e achismo, a primeira perde relevância, enquanto a segunda eleva-se a um posto que jamais mereceu.
Mas assim é o mundo da pós-verdade, onde fatos são deixados de lado em prol de um discurso que toque à emoção e a crenças pessoais. É não apenas natural que em meio à pandemia, os instintos mais primitivos sejam ativados, que o medo domine o pensamento e dele se extraia o não-raciocínio. Assim, diante da complexidade e da incerteza, volta-se ao que escreveu o americano H. L. Mencken:
“Para todo problema complexo existe uma solução simples, elegante e totalmente equivocada.”
Perante a incapacidade de absorver a estrutura lógica de uma ciência que se ancora em metodologias comprobatórias, com variantes e regras demais, porém estritamente factual, reduz-se o campo de visão ao que determina o estômago e experiências prévias, a ouvir-dizer, encaixando narrativas a ideias pré-concebidas que são o expurgo da ignorância.
Ao considerar recorrentemente a reabertura do comércio e querer promover o “isolamento vertical”, os pressionadores do poder público abandonaram qualquer cunho científico, qualquer medida verificadora de validez, e apelam a uma crença de que brasileiro tudo pode, com fé, ginga e um jeitinho que é só nosso, mestres da gambiarra que somos.
Enquanto o mundo se fecha depois de dispender das mesmas artimanhas narrativas de cá e ter colhido resultados catastróficos, seguimos com a certeza imutável, porque Deus e o jejum hão de prover, porque a temperatura espanta a pandemia que nem vidro blindado, porque o medicamento milagroso haverá de nos salvar, o que são algumas mortes (milhares, dezenas ou centenas de milhares, e daí?) diante da economia? Os outros lá de fora é que certamente não foram capazes de torcer o suficiente como a gente, brasileiros com muito orgulho e muito amor!
A pluralidade do debate se faz a partir de premissas que buscam o entendimento, partindo de pressupostos da ética do discurso de Habermas e tendo o princípio fundamental de Aristóteles de que não é necessário discutir com alguém que nega os princípios definidos. Assim, não se debate o que nega a ciência, assim como não se aceita ou respeita o que reduz ou ameaça a humanidade alheia nem o que busca impor comportamentos normativos que dizem respeito à esfera meramente pessoal.
A postura de Átila Iamarino no Roda Viva de 30 de março de 2020, seguiu esta linha ao perguntarem sobre o isolamento vertical. Se não é ciência, portanto, não merece atenção, exemplo semelhante ao de Gabriela Prioli na CNN ao ser confrontada por argumentos vazios de lógica, apelando a justamente às famigeradas fake news: mentiras que, ao se pintarem de verdade, são o ralo da civilidade.
O fato é que o esforço de combater a mentira é muito maior que o de criá-la. Não se há, portanto, de propagar a manipulação. De nada adianta expor a ignorância de quem dela se orgulha. O problema é complexo e extrapola a pandemia, ao se utilizarem das táticas do fingimento aqueles com poder.
O caso de Daniel S. assim como há alguns anos foi o de Bolsonaro, e é o de tantos políticos, mas deles não apenas, não tem nada a ver com cerceamento da liberdade de expressão. Porque tem palavras que geram consequências reais.
Nos EUA, o simples ato de alguém levar a mão à posição de saque de armas pode configurar grave ameaça, passível de legítima defesa. Com as palavras, ocorre efeito similar, mas a delimitação desta agressão como crime é campo obscuro – e perigoso.
O desafio dos sistemas jurídicos e legislativos mundo afora está em conseguir definir a linha que identifique a partir de que ponto se promove o estímulo à ação violenta de outros. Este é um drama antigo, que sempre livrou muitos criminosos de prisão justamente porque uma pessoa não pode ser responsabilizada pelas ações de outras quando não há ordem direta. Mas o caso de 6 de janeiro de 2021 nos EUA e a marcha golpista liderada por Donald Trump – além das estruturas de influência das redes sociais, que ampliou o raio de atuação de uma mensagem para literalmente o mundo inteiro – mudou a mentalidade para que agressões diretas a instituições de contrapeso de democracia.
O que Daniel S. cometeu não foi uma opinião: foi um crime direto de ameaça e de insurreição. E dada a urgência do tema, alternativas têm que ser criadas para que o levante da extrema-direita não ganhe ainda mais corpo.
O que se promove, portanto, ao refutar a pena ao contumaz presidiário-deputado não se alinha ao tolhimento da liberdade de expressão. Porque continuamos livres para nos expressarmos como quisermos. Mas o que se quer é que não haja consequências à palavra expressada, um salvo conduto, portanto, à criminalidade. Um excludente de ilicitude, por assim dizer. E isso não tem nada a ver com liberdade de expressão, mas sim, com impunidade.
Ao fingimento da maior plataforma de gaslighting da história do mundo moderno, ainda estão todos tentando entender como romper a barreira da ignorância que não aceita o científico nem o civilizado sem a catástrofe concretizada, buscando fugir do canto da sereia da teoria de Mencken para escapar da solução fácil que nos trouxe ao obscurantismo.
Artigo publicado Papo de Galo_ revista #12, de 26 de fevereiro de 2021, páginas 32 a 35.
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