O transporte urbano é um grande paradoxo, ou assim deveria ser entendido pelos planejadores e gestores governamentais. Todo esforço deveria ser empreendido para promover o encurtando das distâncias entre os locais de moradia e os locais de emprego, lazer e serviços a ponto de podermos percorrê-las a pé ou, no máximo, utilizando uma bicicleta, tornando residual o uso dos meios mecanizados.
Esse esforço de reconstruir as cidades com vários centros, ou mesmo uma cidade sem centro, onde cada citadino tenha perto de si praticamente tudo o que precisa em seu cotidiano, será um empreendimento de décadas, mas já deveria ter sido começado. Até lá, devemos fornecer condições de acesso os poucos centros existentes, porém investindo em transporte coletivo eficiente e acessível ao invés de induzir as pessoas a comprarem automóveis particulares e habitarem longe de onde trabalham ou se divertem.
Falta a compreensão de que a solução para os congestionamentos, para as polui-ções sonora e do ar, para os atropelamentos, enfim, para todas as externalidades negativas provocadas pelo atual modelo adotado no Brasil, não está na escolha dos modais em si, mas na forma como produzimos as nossas cidades. Essa arti-culação entre transportes urbanos e uso do solo chamamos de mobilidade urbana, para evidenciar que se trata de algo muito mais amplo do que a simples escolha pela melhor solução tecnológica, pois passa também por levar em consideração uma série de disputas pela apropriação dessas obras coletivas que são as metrópoles.
Boa parte das grandes cidades do mundo já entendeu que não adianta construir metrôs inacessíveis ou ineficientes, pois andarão vazios. Pior ainda é quando optam pelo rodoviarismo1, duplicando as vias e construindo viadutos, elevados, túneis etc. Tudo isso tem efeitos apenas de curto prazo, porém impactos financeiros, sociais e ambientais significativos. Pouco tempo após inauguradas essas intervenções, nos encontraremos diante de engarrafamentos e de índices de poluição ainda mais elevados do que antes, além do aumento do espraiamento2 urbano e do insulamento3.
Entretanto, os gestores governamentais de Salvador (Prefeitura e Governo do Estado) continuam fixados no modelo fracassado do rodoviarismo e mesmo as intervenções destinadas ao transporte coletivo não objetivam inverter a atual hierarquia de prioridades. Reproduzem assim os meios técnicos e o modelo de cidade que nos trouxeram até a atual situação de segregações social e racial brutais, legitimando os fluxos quase que exclusivamente voltados para a exploração da força de trabalho.
Digo isso porque Salvador é uma cidade de origem colonial e nem mesmo o seu exponencial crescimento nas últimas décadas foi capaz de quebrar essa identidade. Continuamos tendo elites com quase todos brancos de um lado e pobres quase todos pretos do outro. E isso se reflete no espaço, com bairros planejados e saneados para uns e o abandono e a autoconstrução para quase todos os demais. Os grandes fluxos da cidade basicamente expressam os deslocamentos dos trabalhadores residentes nos bairros populares para os bairros das classes média e alta, que por sua vez se autoisolam em condomínios.
Fora desses grandes fluxos, o ato de se deslocar pela cidade se tornou um martírio ainda maior. Por exemplo, não há linhas de ônibus pensadas para garantir os lazeres e nem as que deveriam estar conectando bairros populares. A grande maioria da população só sai dos seus bairros para trabalhar, não se apropriando assim da cidade produzida por ela durante os dias úteis, sendo essa uma das maiores alienações possíveis. Isso se soma ao insulamento cada vez maior daqueles que nem para trabalhar se deslocam, pois não têm empregos ou não têm dinheiro para pagar a tarifa dos transportes coletivos. E como as classes média e alta não utilizam os ônibus e metrôs, se autoisolaram e acessam apenas os serviços e lazeres ofertados pelo mercado, elas não se encontram com as classes populares de forma alguma, formando dois mundos completamente diferentes em uma mesma cidade.
Uma mobilidade urbana pensada como algo muito maior do que um arranjo entre modais, que leve em consideração a necessidade de remodelar as cidades de uma forma que os fluxos não sejam apenas esses que refletem a desigualdade a e segregação, conectaria bairros e permitiria que as pessoas se apropriassem dos espaços mais qualificados da cidade, que acessassem os melhores serviços, as melhores oportunidade de emprego, as melhores escolas e universidades, pelo menos até quando deixasse de existir a dualidade centro-periferia. Não seria o caso de intensificar os fluxos atuais, mas de construir novos fluxos ou de melhorar os atuais fluxos periféricos. E não se trataria apenas de escolher a melhor tecnologia, mas de garantir que as pessoas tenham condições de embarcar nos ônibus, metrôs, VLTs (veículos leves sobre trilhos) e até mesmo monotrilhos quando quiserem participar e se apropriar da cidade que existe para além dos seus bairros.
Porém, em Salvador, continuam tratando os bairros populares como se não fossem merecedores de investimentos, dificultando que se transformem em novas centralidades, assim como o transporte coletivo continua sendo pensando exclusivamente para os trabalhadores mais pobres, e não dentro de uma política de transição modal e energética que faça com que o sistema de transportes coletivos tenha tarifas módicas, além de qualidade, confiança, segurança e conforto suficientes para atrair novos usuários.
Comecemos pelo BRT (Bus Rapid Transit), uma intervenção promovida pela Prefeitura de Salvador. Como cartão de visitas, tiveram de cortar dezenas de árvores para construir vias elevadas. Essas vias elevadas, por onde passarão mais automóveis particulares do que os ônibus articulados do BRT, em breve se encontrarão congestionadas e, em troca, teremos um entorno completamente deteriorado e hostil aos moradores, comércios e pedestres. O que restava de cidade na AV. ACM sumirá para que os automóveis possam fluir temporariamente com um pouco mais de velocidade.
Essa é a mesma lógica da Ponte Salvador-Itaparica4, pensada pelo Governo do Estado. Pior do que a obra do BRT, que pelo menos terá uma faixa para o transporte coletivo, a Ponte servirá apenas para os automóveis. Será, portanto, uma autoestrada que despejará dezenas de milhares de veículos diariamente tanto no Centro Antigo de Salvador quanto na Ilha de Itaparica, deteriorando a qualidade de vida das populações aí residentes. A absurda promessa é de que as pessoas habitem na Ilha e venham trabalhar e consumir em Salvador, gastando horas e recursos por dia dentro de veículos, quando deveriam viver perto dos locais de trabalhos.
O Monotrilho do Subúrbio5, que é vendido como se fosse um VLT por conta da gambiarra que o governo do Estado teve de inventar para não assumir que a licitação foi fracassada, traz consigo problemas ainda mais graves, pois não leva em consideração a população que passará a viver embaixo das vigas de concreto dessa intervenção. E como falar do modelo de financiamento do transporte coletivo virou um tabu, boa parte da população sequer terá dinheiro para acessar o modal que passará vazio sobre as suas cabeças.
O Monotrilho do Subúrbio traz consigo problemas ainda mais graves, pois não leva em consideração a população que passará a viver embaixo das vigas de concreto dessa intervenção. E como falar do modelo de financiamento do transporte coletivo virou um tabu, boa parte da população sequer terá dinheiro para acessar o modal que passará vazio sobre as suas cabeças.
Todas essas intervenções citadas se somam ao metrô, às linhas Azul e Vermelha, à Nova Rodoviária etc. como ações que, apesar de terem muitos impactos positivos, são impostas sem que antes seja aberto diálogo com as comunidades afetadas, com movimentos sociais, com os intelectuais e os especialistas que dedicam a vida a apresentar propostas para a nossa cidade. Como os custos delas não são baixos, ao contrário, corre-se o risco de comprometer seriamente a capacidade de investimento da Prefeitura e do Governo do Estado para as próximas décadas, estrangulando os futuros governos que, por sua vez, se encontrarão impossibilitados de implementar projetos com real capacidade de resolver parte dos problemas de mobilidade urbana, por mais simples e muitíssimo mais baratos que possam ser, a exemplo dos ascensores, transportes marítimos, ciclovias e requalificação das calçadas. Ou mesmo de fazer apostas mais ousadas, porém com uma capacidade incrível de diminuir as desigualdades e as segregações, a exemplo dos subsídios ao transporte coletivo praticados em quase todas as grandes cidades do mundo.
*Daniel Caribé é administrador público e doutor em arquitetura e urbanismo. Atualmente é um dos coordenadores do Observatório da Mobilidade em Salvador.
Artigo publicado na Papo de Galo_ revista #14, de 28 de março de 2021, páginas 66 a 71.
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