Em New York, New York, canção eternizada na voz de Frank Sinatra, trilha sonora de musical de mesmo nome lançado em 1977, estrelando Liza Minelli e Robert de Niro, ele canta:
“I want to wake in a city that doesn’t sleep”
Cada qual no seu lugar, menino Sinatra bem sabe, substitua New York por São Paulo e contexto é precisamente o mesmo.
São Paulo é cidade que nunca para, nem de cometer abusos.
Ao chegar migrado do Nordeste, com parada de 2 anos no Centro-Oeste desse Brasilzão de deus nenhum, deparei com um monstro de concreto.
Da janela do avião, via-se cidade até o sem-fim. Se São Paulo, se cidades da Região Metropolitana, fato é que chegávamos com aquele ímpeto de desespero esperançoso, de gente que sai do pior torcendo pelo melhor.
E São Paulo logo ofereceu seu melhor.
Na megalópole me estabeleci em definitivo. Casa, família, amigos, negócios, filhos.
Ao mesmo tempo, convivia com as micro agressões (por vezes não tão micro) de uma cidade que expõe suas feridas sem pudor.
Sim, é a terra das oportunidades. É onde pulsa o coração econômico do Brasil. Para quem vem com vontade, o céu é o limite.
Ou será que é mesmo?
Porque o tempo todo convivi com o preconceito, mesmo que reduzido por não me encaixar no estereótipo esperado do baiano. Nunca vi alguém de sotaque regional carregado crescer na carreira corporativa.
E sofri na pele, frequentemente calado, as agruras de ser chamado de maneira pejorativa de baiano, em definição que é alimentou a polêmica do Dicionário Informal e propagado pelo Google:
Parece tolo, mas não desmereça o sentimento.
Porque a máquina de moer origens de São Paulo me fez aderir à máxima de dizer-me ser “baiano, mas não pratico”. Até porque baiano, no imaginário, não é apenas o brega, o espalhafatoso, o ridículo, mas é também o preguiçoso. E São Paulo não aceita leseira.
Vambora! Vambora! Olha a hora!
Demorei anos para me reconectar com as coisas da Bahia. Abandonei de vez a menino-amarelice e afirmo-me hoje baiano praticante, e vocalizo contra esses abusos de apropriação que São Paulo sempre tenta impor.
Conto um causo.
Em 2011 nasceu meu filho mais velho, Alexandre. No hospital, recebemos a visita de uma senhora amiga da família. De idade um tanto avançada, dado momento, com feição de desdém e de desprezo, falou que tal negócio, nem me recordo o quê, era muito, segura a emoção, ‘baiano’.
Pra quê.
Peraí, minha senhora.
O limite do meu respeito é quando você me falta com ele. Como assim, “baiano”? Baiano em que sentido? De ridículo? De preguiçoso?
Assisti a senhora sambar argumentos para esconder o racismo. Ela, ciente de onde vim, ensaiava saídas tortas, que só a reduziam ainda mais.
Meu filho recém-nascido e eu ali sendo ofendido no quarto de hospital.
É São Paulo.
“É só uma brincadeira. Não estou falando de você.” Nas entrelinhas, gritando, ‘você nem parece baiano.
Durma com um barulho desses.
Aliás, nem dá, né, Sinatra? A cidade nunca dorme.
NON DVCOR, DVCO
No brasão da cidade de São Paulo está lá latim que a cidade não conduzida, ela conduz.
E sei lá, o jeito que São Paulo se apropria das coisas para se colocar no centro de tudo, inclusive do que não lhe cabe, é diferente, sabe?
Sim, prezado leitor, cara leitora, vocês que são conduzidos por estas linhas – quem é o paulista aqui agora? – vou entrar no debate da infame capa da Veja SP.
Porque o sangue ferveu, irmandade. Ferveu porque só quem vem de fora sabe da dificuldade que é manter as raízes com água.
Na base da pirâmide, os iguais retroalimentam a origem em comunhão. Basta, contudo, a entrada de elemento pretensamente superior, que a gente se retrai, porque o preconceito vem mais certeiro que um “meu”, “mano”, e “da hora”.
Humanos se adaptam às situações que provocam menos problemas. Fazer-se paulista é solução de autopreservação.
Mas Farialimer que se preze não liga para esse negócio de raiz e de bom senso, não. Farialimer quer criar experiências para majorar preços, dando um toque super especial-chique ao rústico e subdesenvolvido que vem de fora.
É aquela: os outros são os selvagens. Cabem aos paulistanos catequizarem o submundo do resto, afinal, são eles conduzem o país, levando nas costas os sanguessugas de Norte e Nordeste, povo comprado por programas assistencialistas que fazem com que fujam do trabalho.
Apois.
Lembrei de conversa que tive com Adaílton, motorista de Uber criado em Iguaí, cidade do interior baiano, em 2017. Ele, do alto de seu sábio conhecimento empírico, vaticina a verdade universal:
“Baiano trabalha demais. Paulista não aguenta o tanto que a gente trabalha, não.”
Tem muito sangue e suor nordestinos na construção da metrópole. Dessa gente que saiu da miséria em busca de uma vida melhor. Simpatizo com essa gente demais: vim de família que migrou na mesma toada. Tive outras sortes, que abriram portas e me mostraram o caminho. Estúpido seria de dar de ombros a estes que são como sou.
É alucinantemente contraditório, pois, que São Paulo seja o ponto de esperança de tantos brasileiros, mas que cobre tamanho preço. Rebelar-se contra isso é fundamental.
Mas, né?, non ducor, duco.
Truco?
Seis, ladrão.
A capa da Vejinha mostra o lado mais perverso de São Paulo. É o espectro exclusivamente branco, que além de retratar o Nordeste, em toda sua maravilhosa diversidade, como um apanhado de gente branca, autointitula-se de maneira imensamente arrogante a “capital do Nordeste”.
“Ah, mas isso não tem nada de mais.”
Claro que tem. Tem muito de mais. Reafirmo: não desmereça o sentimento. Porque não foi uma manchete de exaltação ao Nordeste. Foi uma manchete de exaltação a São Paulo, reduzindo o Nordeste a um quintal a ser apoderado por aqueles que conduzem. O Nordeste, pois, é subordinado a São Paulo.
Esse enredo já foi visto vezes demais para ser ignorado. Gourmetiza, eleva preços, gentrifica, lucra, cospe o bagaço e vai para o seguinte.
Entre Farialimers e qualquer outro, eu fico com a pureza da resposta de Adaílton.
Mas, sim, São Paulo. 467 anos.
Acredite: amo essa cidade. Essa complexidade toda é o que a torna ainda mais charmosa. Tem muitas cidades dentro de São Paulo. É o choque de culturas de destrava o progresso.
Mas atentemo-nos às forças-que-conduzem. Quando este choque não é aproveitamento mútuo, mas estereotipização que suga origens e mói raízes, temos que lutar. Mesmo que seja contra a velhinha no hospital num dos dias mais felizes da vida. Uma hora, transborda.
Ensaio para a Papo de Galo_ revista #10, de 29 de janeiro de 2021, páginas 50 a 55.
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