Por algum motivo que jamais poderei ser capaz de me lembrar, estava numa sexta-feira santa, ainda pela manhã, com meu avô Leonan, na Barra, em Salvador. Meus pais tinham seguido para Campo Grande para recomeçar a vida, filhos chegariam depois. Morávamos com minha avó na casa do Santo Antônio. As relações entre meus avós não era nem um pouco amistosa, mas foram obrigadas a serem restauradas ao mínimo possível por conta da necessidade provocada pela ausência de meus pais.
Meu avô era uma figura ímpar. Haverá mais dele.
A manhã correu rápida e o meio-dia se aproximava. A fome começava a apertar. Seguindo pela avenida da praia, avistamos uma lanchonete.
Você, como bom cristão num país tradicionalmente cristão, sabe que a tradição diz que a sexta-feira santa é dia de comer bacalhau. Se o orçamento não permitir, qualquer outra coisa, mas não me venha comer carne! Tem uns fazem promessa, 40 dias de jejum, não bebem Coca-Cola, sem chocolate, glúten e lactose. Peixe é o mínimo que a sociedade exige, tipo peru no Natal.
Eu, ingênuo, pergunto um tanto espantado:
– Hambúrguer?
Deu curto na minha cabeça de menino besta. Rapaz, não podia, era muita heresia!
Ele apenas sorriu.
Entramos na lanchonete que estava, conforme era de se presumir, vazia. Éramos os únicos no salão. Pude reparar nos olhares surpresos das atendentes. “Porra, véi…”, se eu tentasse, poderia ouvir. Claramente, não estavam felizes de estarem ali.
Ele vê o menu nos cartazes acima do balcão. Olha interessado, fazendo cara de escolha. “Já escolheu?” Ele fala virando para mim, que apenas respondo com cara de “posso?”
Ele toma à frente, dirige-se ao caixa.
– Quero um cheeseburger com batata frita e Coca-Cola. O mesmo para o meu neto.
No que trazem a bandeja com nossos lanches, sentamos na mesa. Ele saboreia seu cheeseburger com um amplo sorriso no rosto. Eu, claro, adoro, que menino que não gosta de hambúrguer, afinal? Ainda mais quando não podia! Era alegria demais.
Era sua maneira de mandar às favas as tradições que considerava sem sentido, de se insurgir contra o sistema.
Ensinou-me, da sua maneira, a sempre questionar o status quo. E que, se for fazê-lo, ainda melhor que se divirta com a cara de espanto dos outros e se deleite com sua própria audácia. Se vier acompanhado de um hambúrguer, tanto melhor.
E que se não for por tudo isso, que seja só de sacanagem mesmo.
Transgressão, para mim, tem gosto de cheeseburger.
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Boa Páscoa, para quem é de Páscoa.
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