Algumas certezas a gente colhe da vida. A morte, inegável, imutável; e as dúvidas que teremos em qualquer momento ao questionarmos nossas ideias e convicções. Está na dúvida e na morte o fundamento da vida. A primeira, impulsionando o conhecimento e o avanço; a segunda, impondo limites às vicissitudes individuais.
Somos construtores de nossas idiossincrasias, contradições incluídas. Se somos seres de dúvida, por consequência, seremos seres de mudanças de humor e de filosofia. Caminharemos de “a” a “z” navegando pelo construto de nossa personalidade. O que hoje é certo, amanhã pode estar inversamente provado, no que versava Platão em sua Apologia de Sócrates “aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não saber.” Platão, em seu texto original, não dizia que nada sabia; ele assentia que não pode saber nada com absoluta certeza, mas pode se sentir confiante acerca de certas coisas. O que se tornou numa paráfrase mundialmente conhecida e atribuída a Sócrates com o “só sei que nada sei.”
Ponderou Heráclito de Éfeso: “a única constante é a mudança.”
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De um filme tenho medo. Assisti apenas uma vez, para nunca mais. Embrulha-me o estômago e debulho-me em lágrimas. A cena em que o pai, Guido (Roberto Benigni) é enviado para o paredão, e mesmo na hora mais pavorosa de sua vida, encontra forças para proteger seu filho Giosuè (Giorgio Cantarini) em A Vida É Bela é tão encantadoramente sublime, e ao mesmo tempo brutalmente forte, que eu não consigo conter as lágrimas. Tenho pavor de reviver este momento, está exposta para mim a minha maior fraqueza: como eu me sinto com relação aos meus filhos.
Recentemente assisti a Capitão Fantástico, produção americana com Viggo Mortensen como Ben, o pai de uma família que vive de maneira isolada do mundo tradicional. Seu modelo de vida é confrontado veementemente por todos por conta do suicídio de Leslie, sua esposa, que sofria de transtorno bipolar.
https://www.youtube.com/watch?v=S-1-Kh99r_o
O filme me tocou pela construção da narrativa centrada no pai. Na viagem que têm que fazer para acompanhar o enterro da mãe, eles se deparam com a não aceitação pelo estilo de vida que possuem. A sucessão de acontecimentos fortalece o sentimento de dúvida no pai, que, mesmo convicto de que fez a coisa certa, está certo de que errou na medida.
Os confrontos com os desejos de seus próprios filhos o fazem reavaliar seu modelo. A interrogação machuca, fere, dilacera. Mais do que o resultado da eventual redução do radicalismo que passou a adotar, enternece-me o conflito interno do pai, que mesmo seguindo seus ideais, convive com a dúvida diariamente. Estou realmente fazendo o que é melhor para os meus filhos?
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Meus filhos moram a cerca de 5.300 quilômetros de distância, no fim do mundo. Fim do mundo mesmo, pois é assim que eles chamam o local, slogan local. Nossas interações são eventuais, e 3 ou 4 vezes por ano ficamos juntos que não desgrudamos, num total de poucos 45 dias.
Não há um dia que passe que eu não me penitencie de dúvidas sobre se deixá-los ir foi a melhor decisão. Não há um dia que eu não olhe para seus retratos aqui em casa e diga que os amo, mesmo que não possam escutar. Não há um dia que termine sem eu que, por mais breve que seja o momento, pense em abandonar tudo para ir para onde eles estão.
A dúvida corrói, e ou aprendemos a contorná-la ou somos devorados por ela.
Aprendi a contorná-la.
Todos os pais criam traumas em seus filhos. Não existe criação correta, modelo que “funciona”. Há, no melhor cenário, indicativos mínimos para que não aconteça um desastre total. Se assim é, seguimos na esperança do mal menor, do menos pior, na decisão pensada que futuro não garante, mas certamente ajuda. E torço para que, com o passar dos anos, com a chegada da maturidade e do tempo, eles entendam por quê o pai vive no Brasil e eles na Argentina, por quê eu não me mudei com eles, por quê não quero ir.
Um professor de faculdade contou de um entrevero com seu filho adolescente, que o enfrentava. Certa altura, o filho xinga e ofende o pai. A mãe, indignada, intervém, “você não pode falar assim com seu pai!” O pai, pacientemente, pede para ela deixar, “isto é importante para ele.” Estava o filho cortando o cordão umbilical, estava matando simbolicamente os pais. Esta etapa acontece em qualquer família, em maior ou menor grau.
É atroz como devemos esconder nossas dúvidas para que nossos filhos tenham a sensação de segurança. Os fiéis podem ter dúvidas, nunca o líder. Dúvidas devem ser consumidas no isolamento para que ninguém perceba. Dor que se enfrenta sozinho é pré-requisito para a loucura. E loucos somos no momento em que decidimos colocar uma criança a mais neste mundo.
Seguimos a esmo com a falsa impressão de que sabemos o que estamos fazendo. Assinto que nada sei com certeza, mas posso, no máximo, estar confiante sobre algumas coisas. Devo me deixar adaptar aos percalços que se apresentarem, decidindo por aquilo que pareça melhor em cada cenário, em cada situação. Pouco ou nada no microssistema é previsível. No fim pode dar tudo errado. Não terei ninguém mais a culpar a não ser a mim mesmo. Mas poderei com calma sentar com cada um e dizer-lhes “Me perdoem, eu fiz tudo errado. Mas isso não muda o fato de que eu os amo imensamente e de que sempre quis fazer o melhor por vocês.”
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