A criançada desperta ainda com o dia escuro. Os pais, senhores do universo e do destino, acordam assim sem muita disposição, tudo tinha sido tão bem planejado para que o sono viesse na escuridão e a claridade despertasse, pouco a pouco, ali e alhures. Mas criança é bicho com energia.
Sábios, entregam telas, aquarelas, papéis, lápis de cor, giz de cera, tintas para que se distraiam. No começo, confessam os pais, era artimanha para manter o barulho reduzido para não incomodar os vizinhos e manter os filhotes em ordem sem grande esforço. Olharam para o lado, vizinho não havia, senhores do universo que são. Se deram conta da bobagem da motivação, mas o resultado impressionou.
Na aquarela da vida, os pequenos não obedeciam linhas definidas e rabiscavam por entre a paleta de cores criando um céu furta-cor em choque. Não sei vocês, mas eu ouço gargalhadas e um “nossa, filha, que lindo!” quando a aurora se faz, alvorada se monta e o dia se achega.
Aquela explosão de cores, laranja, vermelho, azul, roxo, com o astro-rei erguendo-se ao fundo num bocejo, primeiro se espreguiçando, depois espiando, depois sentando na cama como que aguardando que o sangue escoe para os membros inferiores fornecendo-lhes pulso, depois levantando vagaroso para escovar os dentes e lavar o rosto.
Começou o dia!
O despertar do sol desperta por inteiro também o senhor do universo e a senhora do destino, que, matreiros, ordenam “Acabou a bagunça! Hora de ir para a escola!”
Alimentam-se direto na fonte de uns buracos negros e seguem.
Os pais, feita a lição parental da manhã, apagam os desenhos puros e coloridos dos rebentos, trocando-os por um azul único, na uniformidade que somente os adultos podem ser capazes de admirar. É horas dos adultos tomarem conta. É tudo azul, azul, azul. Nem um vermelho. Nem um laranja. Nem um roxinho. Às vezes, brancos e cinzas, mas isto acontece quando tem briga em casa. O tempo fecha, literalmente.
O dia passa para que ambos provem sua capacidade provedora em conformidade com as leis da física, tradicional ou quântica, num elo que eles fazem questão de guardarem para si. Coisa de criador enciumado com a criação, não querendo que sua lógica seja desmascarada, porque aí qualquer um criar pode.
“Querer até podem, mas criar é que são outros 7…” diz a senhora do destino, impingindo razão justamente falando do ataque de impulso que tiveram que explodiu no que se vê hoje.
Tal foi como lembram:
Casados, ganharam do senhor do tempo e da senhora da vida um jogo completo de bolinhas decorativas que circundavam em órbita a cama do recém casal. Diziam haver grande poder naquelas diminutas bolas de gude.
“Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, alertou papai tempo. “Agora não vai me derrubar um porque isso aí causa um problema…”
Pois na sanha do amor consumado, num duplo twist carpado que não se fez desenho no Kama Sutra, a senhora do destino deu de calcanhar numa das esferas, que voou janela afora se espatifando em zilhões de pedaços, fazendo estardalhaço.
O barulho fez-se ouvido pelos senhores do tempo e da vida, que foram correndo ter com eles já imaginando o pior.
Encontraram o casal tomando café num buraco negro especial para lua-de-mel, para serem repreendidos por papai e mamãe, que percebendo o tamanho da imaturidade dos agora contraídos em matrimônios, relegaram a eles a eternidade de cuidar daquele rompimento das regras do espaço, “se não aprende por bem, aprende por mal”.
Que ironia para a senhora do destino não poder gerir o seu… Inveja os homens por seu livre-arbítrio, mas vez ou outra gosta de interceder, para acalmar-lhe o ânimo e animar-lhe a face com sua demonstração de poder. A eternidade pode sem um tanto entediante. “Bem, você aqui morre hoje e você se lasca.” E dorme tranquila, pensando, “sou foda”. Quando em vez o marido descobre, e tome reclamação na firma para dar conta da interpelação não solicitada, barraco quebra, e certa discussão provocou teve até tsunami. Ela jurou controlar o ímpeto.
Fim do dia as crianças voltam da escola, animadas. Papai universo e mamãe destino não conseguem mais acompanhar o ritmo do vai-e-vem ziguezageuado. Sem pestanejar – não tem Peppa Pig por ali – apontam para as telas, aquarelas, papéis, lápis de cor, giz de cera, tintas e afins para contarem como foi o dia.
E, uma vez mais, pintam fora da linha, mais mistura de cores, desta vez como se rebobinando a fita. O sol se espreguiça, coça a barriga, “deu minha hora, plantão dobrado, bato ponto em outro lugar”. O astro se despede para no fim ainda deixar um rabo de olho, última checagem se tudo está em ordem.
“Pode ir que a gente toma conta”, ordena o senhor do universo, que vira para as crianças, “hora de dormir!”
Elas vão, para em seguida eles apagarem seus rabiscos e, lembrando o guru que conheceram na lua-de-mel, garantirem o Yin e Yang com a escuridão da noite. Quando pesadelos vêm para assombrar o descanso dos pequenos, ligam seu abajur de cabeceira, a dizer “está tudo bem”, e se riem de nós, mundanos, que chamamos abajur de lua.
“Não sabem de nada…” dizem antes de um carinhoso beijo na testa, fechando a porta e voltando para seus afazeres de gente adulta que se considera importante.
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