Qualquer análise da Constituição atual deve ser feita tendo como parâmetro cenário de quando foi promulgada.
Em 1988 o Brasil vivia a incerteza da transição democrática. A Ditadura se despedira apenas 3 anos antes, o primeiro governo civil foi eleito de maneira indireta, a inflação era assustadora. Além disso, muitos políticos retornavam à cena pública depois de prisões e processos durante a Ditadura que cassou liberdades individuais com sangue nos olhos e nas mãos.
Para evitar rebotes persecutórios de “crimes” cometidos durante a Ditadura no Brasil, a Constituição, para assegurar a estabilidade política, instituiu o foro privilegiado como proteção à Democracia.
Passados pouco mais de 32 anos desde sua promulgação, o fantasma da Ditadura volta a assombrar o Brasil. Mas a realidade de momento é totalmente outra. E o foro privilegiado causa um efeito reverso na intenção que se propunha. Hoje em dia, ele é argumento técnico-jurídico para que bandidos defensores de arroubos autoritários – e de torturadores, regimes de exceção, preconceitos de toda sorte, dentre muitos outros – operem livremente, uma vez atuando por dentro da estrutura democrática.
É uma ironia em si: aqueles que pregam o rompimento democrático se utilizam de instrumentos projetados exclusivamente para proteger a democracia.
A Câmara dos Deputados, tendo boa parte de seus nomes mais poderosos – incluindo o do presidente, Arthur Lira (PP-AL) – imputados como réus em processos no STF, procurou se proteger de alguma maneira. Para isso, num primeiro instante, acolheu a determinação do STF, mantendo a prisão de Daniel S. No instante seguinte, no entanto, empurrou votação em regime de urgência de PEC que ficou conhecida como PEC da Impunidade, que ofereceria aos políticos ainda mais proteções contra crimes cometidos.
Este movimento pareceu excessivo até para o Partido Novo, que atuou junto com a quase totalidade das pessoas de bom senso do Congresso Nacional para derrubar a PEC. Uma vitória da civilidade, sem dúvida.
Fisiologismo de proteção
A sucessão de fatos ocorridos em virtude dos crimes cometidos por Daniel S. indica o nada bom e extremamente velho fisiologismo das instituições políticas nacional.
Se o STF se viu obrigado a atuar diante de mais uma grave ameaça contra si – mesmo que o tenha feito contra um soldado raso do bolsonarismo –, a Câmara agiu da mesma maneira.
A similaridade, no entanto, se encerra aqui. O STF, ao levantar voz e impor um limite de atuação, mesmo com atraso, o faz, dentro da proteção própria, com consequências à manutenção democrática do país.
Já a Câmara o faz exclusivamente para promover um salvo conduto de que tanto precisa. Arthur Lira, ao passar à frente o tema do super foro privilegiado como prioridade maior do que debates sobre auxílio emergencial, compras de vacinas e outras questões mais que óbvias, viu a oportunidade para que os processos no STF, independentemente de confronto, fossem sepultados em definitivo. Era a Cãmara, pois, legislando em causa própria.
Pautar esta PEC não foi, portanto, ação do Governo – o que pode justificar o Novo não ter embarcado na proposta, mas isso é somente conjectura provocativa –. mas sim um contra-golpe oportunista do Congresso.
Ao agir por interesse próprio, o STF acaba por contribuir para a manutenção da vitalidade democrática do Brasil; já os líderes do Centrão no Congresso, que já vitoriosos com o fim melancólico da Lava-Jato, veem limites.
A democracia ainda pulsa
Há de observar estes desdobramentos de uma outra maneira. Uma em que as tais instituições democráticas, de um jeito torto, respiram.
Ao confirmar a sentença de prisão de Daniel S., o Congresso indica respeito –ou medo– ao STF. Este pequeno gesto prova que, dentro do Congresso, não se vislumbra qualquer possibilidade de ruptura institucional. Afinal, por que respeitar uma decisão de uma corte jurídica que pode ser desfeita? Por que respeitar uma decisão de uma corte descreditada?
Já o STF, alvo constante da horda golpista, respira, oferecendo resistência, mesmo que seja apenas quando se vê diretamente ameaçada.
Na última hora da sexta-feira, dia 26 de fevereiro, a PEC da impunidade foi derrubada. Deve ser encaminhada às respectivas comissões internas para ser avaliada – e derrubada em definitivo.
Ou seja, a pressão popular ainda funciona.
São alentos mínimos dentro de uma realidade intragável em um país sob o cetro inepto de Jair Bolsonaro. Ou não tão mínimos assim.
Os índices de rejeição do presidente despencam. As crises são muitas, não apenas mal administradas, mas também provocadas pelo governo. Vive-se o repique inflacionário mais grave desde a criação do Plano Real.
Essa conta vai chegar para o presidente. Se não agora, certamente em 2022. Por isso o presidente se adianta no fortalecimento do discurso de fraude eleitoral. Ele precisa disso para adiantar a não aceitação de uma reeleição perdida.
Se há muito pouco tempo o cenário provável era de intervenção, agora este caminho está sepultado de vez. A democracia resiste, mas não se deve esmorecer. A ofensiva e a vigilância devem manter guarda.
Artigo publicado na Papo de Galo_ revista #12, de 26 de fevereiro de 2021, páginas 36 a 39.
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