Entro no Gol do Uber que vinha para me levar da minha casa até a Vila Olímpia. Na agenda um café com uma amiga nova, escritora, para buscar o livro que ela tinha acabado de lançar. Se é para comprar um livro, que seja diretamente das mãos do autor, se assim pode ser feito.
Já na saudação de Adaílton, um homem moreno, 40 anos de idade, cavanhaque já com alguns fios brancos, cabelo cortado baixinho e extremamente bem humorado, o sotaque apitou em minha cabeça.
– De onde você é, rapaz? – Perguntei.
– Eu nasci em São Paulo, mas com 1 ano fui pra Bahia. Me criei lá.
Pronto!
Baiano, claro.
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A HISTÓRIA DE ADAÍLTON
A sorte de Adaílton sempre foi transitória. Não chegou a conhecer o pai, que os abandonou quando ele tinha poucos dias de vida. Tem pelo menos o seu nome em sua certidão de nascimento. Belo dia, o progenitor falou que ia ali, não era para comprar cigarros, mas o desenrolar da história é o do clichê. Sem poder dar conta de uma criança sozinha – ainda ela uma criança, nem ainda 20 anos completos – levou o filho para morar com os avós em Iguaí, no sul da Bahia, poucos quilômetros a leste de Vitória da Conquista.
– Graças a Deus que tinha meu avô. Foi ele quem me criou. Eu trabalhava na roça, todo dia. Ele me ensinou tudo, cuidou de mim como se fosse filho, e nunca pediu nada em troca.
Simplício, o avô de Adaílton faleceu quando ele tinha 15 anos. Pelos próximos 3 anos ficou sob os cuidados da avó, mas saiu da roça da família para trabalhar nas fazendas próximas. Com a simplicidade de quem vê beleza no que está em volta, apaixonou-se pelos caminhões, que iam e vinham e poucas raízes criavam. Quando os 18 anos chegaram, o patrão de uma das fazendas queria levar uns cavalos para Belém do Pará. Com ele dirigindo! Foi sem pestanejar.
– Morei 4 anos em Belém. Morava e trabalhava na fazenda, de domingo a domingo, sem descanso, nada. Era 1994 e a gente ganhava 70 reais por mês.
– Isso aí era quase escravidão!
– Pois é, mas a gente não tinha noção dessas coisas, não. Um dia a gente decidiu ir na cidade gastar os 70 reais do mês. Jogar uma sinuca, tomar uma cerveja. Andamos os quase 30 quilômetros de estrada da fazenda até Belém. Mas voltamos de carona!
Ele ri. E continua.
– Eu fui com um tio meu e a esposa dele, que também saíram de Iguaí para lá. No bar eu conheci um caminhoneiro, que quando eu contei onde trabalhava, falou que era para eu ir embora o quanto antes, que o patrão era desses que resolvia as coisas mandando matar. E eu tinha medo dele já, tinha ouvido umas histórias, mas a gente acha que nunca vai acontecer com a gente. O caminhoneiro nos deu carona de volta, e decidimos que era hora de fugir. Meu tio conseguiu que uma irmã dele que morava em São Paulo mandasse dinheiro suficiente pros três e saímos escondidos de ônibus pra cá. Quatro dias e meio de viagem!
Finalmente, já com 22 anos de idade, Adaílton veio morar com a mãe, em Diadema. Assim que chegou começou a trabalhar em uma transportadora.
– Eu sempre quis trabalhar com caminhão. Gosto de estar na estrada. Hoje mesmo deixei um currículo numa transportadora aqui perto que está contratando. Quero voltar a viajar. Já fui para tudo quanto é canto do Brasil, difícil ter um lugar que eu não tenha ido. E até pra fora já fui, pro Chile, pro Paraguai. Hoje eu sei tudo de São Paulo. Conheço tudo quanto é caminho daqui.
Em pouco tempo na megalópole paulista, se engraçou com uma moça, dali mais um pouco estavam morando juntos, mais um pouco ainda nasceu a filha dele, hoje com 15 anos. Depois de muitas idas e vindas, hoje estão casados e felizes, com mais um filho que chegou, agora com 5 anos.
A gente passa em frente a uma funilaria na Vila Olímpia. Ele reduz a velocidade, abaixa o vidro do carona, e grita lá de dentro:
– Vai trabalhar direito aí, viu?
Um deles se levanta e fala umas gracinhas, no que ele ri gostosamente.
– Esse aí é primo meu, lá de Iguaí.
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O ESTEREÓTIPO FALACIOSO
– Baiano trabalha demais. Paulista não aguenta o tanto que a gente trabalha, não. – comenta ele enquanto atravessávamos a Marginal Pinheiros.
Não comento das minhas atividades para não quebrar o argumento dele, mas concordo. Muito de São Paulo foi construído com as mãos, o suor, o sofrimento e a esperança dos migrantes do Norte e Nordeste.
Parte do mito da preguiça, se você estiver disposto a ler algo mais sociologicamente apurado, leia o artigo publicado na revista da Fapesp n° 103, “A invenção da indolência”. Leitura obrigatória para quem quer entender um pouco mais de Bahia.
Mas não foi disso de que falamos.
Você que me lê agora certamente conhece uma história de baiano, dessas anedotas engraçadinhas. Lembramos de três delas.
A primeira, a história do cafezinho que o freguês pede sem açúcar, mas o garçom, acostumado com o café sempre doce servido na Bahia, ao ser questionado se tinham colocado açúcar, responde contornando a situação: “mexa não…”
A segunda é a fábula do baiano que vira pra mãe:
– Mainha! Você tem remédio pra queimadura de taturana?
– Oxe, tenho não. Por quê? Você se queimou, foi?
– Ainda não, mas ela tá vindo pra cá…
A última, a dos dois baianos sentados embaixo de uma árvore na beira da estrada. Um carro passa em alta velocidade e vê-se uma nota de cinquenta reais voando pela janela aberta, para ser conduzida pelo vento até o outro lado da via. Passada bem uma meia hora, um vira para o outro e fala:
– Rapaz, se o vento muda a gente ganha o dia…
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RETICÊNCIAS
Caso você não tenha percebido, para escrever em baianês faz-se mister, necessário e fundamental abusar das reticências. O jingado do fim de uma sentença de um nativo típico, aquela com preguiça até de terminar de falar, somente pode ser representado por estes três pontinhos.
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A VERDADE ESTEREOTÍPICA
Eu pego um ar da porra quando vem gringo contar essas histórias da Bahia como se tivessem acontecido com eles. Falácia! Culhuda! E olhe que nem contei da anedota do suco de abacaxi. Faz-se de besta, rapaz! Como eu já disse numa outra vez, em matéria de dissimulação, na Bahia só tem PhD. E vem jogar essa pra cima de mim? Mas quá! Eu subo nas tamancas.
Certa feita, eu deitado na Barra, dia de semana; branco, enorme, não pertecendo. Não ornava. Lá vem um ambulante e na grade tinha chapéu, óculos de sol, protetor, bronzeador, canga e o caralho AQUÁTICO. Chega já cantarolado, a felicidade estampada numa propaganda da Bahiatursa:
– Sorria! Você está na Bahia!
Eu olho pro sacana sem falar absolutamente nada. Ele entende e retruca “Porra… Você é baiano, né?” Apenas consigo falar “Colé, véi?” Eu entendo o simpático vendedor, no entanto. Não pareço.
Divago.
Eu, atento que sou à verdade dos fatos, seja ela factual, inventada, interpretada ou distorcida, afirmo: se é para estereotipar, não precisa inventar, basta dar uma volta pela cidade e ficar de ouvido ligado porque você vai sair cheio de história para contar.
Como teve um colega de trabalho, que resolveu certo ano passar ensolaradas três semanas de férias na Bahia com a família.
Depois de duas semanas dedicadas a moquecas, acarajés e disfunções estomacais, elevou a mãos em devoção agradecida quando viu o outdoor de uma cantina italiana. Faminto por uma massa, qualquer que fosse, quebrou à direita e logo mais entrou no grande salão absolutamente deserto. Não era nem meio-dia. Ninguém os recepcionou. No fundo, atrás de um balcão, uma senhorita lia o jornal do dia com atenção.
Passou-se um tempo e nada. Nenhuma viva alma para ir ao menos dar um alô.
Já cheirando a guardado de tanto esperar, ele resolve levantar-se para ir ter com a menina do balcão. Ela, na sua, continuava entretida, provavelmente sem se dar conta de que havia gente ali, ou se notou, não deu pinta. Ele tenta:
– Boa tarde. Tudo bem? Nós estamos sentados ali na mesa – aponta com o dedo em direção à mulher e filho – já tem um tempo, mas ninguém veio atender a gente ainda… Será que você pode me ajudar?
Daí a gente realmente dá valor ao que dizia Otávio Mangabeira, que qualquer absurdo na Bahia tem precedente. Ela, poço de candura e de prestatividade – não tenha dúvida que a entonação foi nessa linha – responde ao meu amigo:
– Certo. Olhe, o senhor aguarde só um minutinho que eu vou terminar de ler o meu jornal e já vou lá atender o senhor.
Evidentemente, uma questão de prioridades.
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