Chamo um Uber para voltar para casa depois de uma reunião que imagino ser capaz de render muitos frutos. Chovia muito em São Paulo.
Quem aparece é o Bruno Daniel. Magro de sobrar pano na camisa e delinear os ossos do rosto. Dirige um dos milhares de Onix que carregam passageiros pelas movimentadas ruas da capital paulistana.
– Se prepara que esse aí vai puxar assunto. O cara é dos melhores contadores de história que conheço!
Assim começa a conversa Daniel, que pega carona conosco na volta para casa, ao mesmo tempo me inflando o ego e agilizando os trabalhos. Nos despedimos com a promessa de uma pizza em breve, aquele famoso “me liga e a gente marca”, que, avesso que sou a estas formalidades não funcionais, cobro sempre, porque quando o papo é bom e a companhia é boa, insistência é virtude.
Fico, então, no carro com meu esguio condutor.
A oportunidade de conversar sobre si anima o motorista. Mas, percebo, falta a prática. Ele quer falar, mas falar do quê, mesmo? Neste caso, sou eu o condutor.
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Bruno Daniel tem 30 anos de idade. Trabalhava na área Administrativa de uma pequena empresa. No meio da crise, a área que dividia com mais 3 colegas, ficaria reduzida a um único funcionário. Ofereceram a oportunidade a ele, que, imaginando poder negociar condições de promoção e aumento salarial na razão do corte de 4:1 que se faria, descobriu que quem quer demitir não quer compensar quem fica. Estar empregado é compensação suficiente. E foi demitido.
Ah, a crise!
Viu-se desempregado. Sem diploma, não consegue sequer ser chamado para entrevista.
– Como é que vou concorrer se tem gente bem mais nova que eu já com diploma, brigando pelas mesmas vagas, topando ganhar menos?
Quer resolver parte disso. Diz que vai se inscrever num EAD para cursar Administração no segundo semestre. Mas para isso, precisa de dinheiro.
Quantos dramas iguais a este você não conhece? Bruno Daniel é mais um na estatística. Mais um sem voz e sem rosto a nos cruzar o caminho a todo momento.
Precisa trabalhar, o que dificulta o plano da faculdade, que por sua vez, dificulta conseguir emprego… Como quebrar este ciclo?
Assim que se viu desempregado, conseguiu um esquema de um amigo motoboy que precisava abrir um novo CNPJ, entregou a carteira de clientes para ele prosseguir. Foi assim que ele perdeu mais de 20 quilos em apenas 3 meses.
– Motoboy é corrido demais. Não tem pausa, não tem almoço. Tem que trabalhar o tempo inteiro. Senão não vale a pena.
No terceiro mês, se acidentou, ficou um tempo parado, e viu que assim não daria, largou a moto. Viu no Uber uma oportunidade de ganhar algum.
Carro no esquema da Localiza, não próprio, porque a condição não permite. Luta para ganhar 2 mil reais por mês.
– Ajuda nas contas de casa. Quem dá estabilidade é minha mulher, que trabalha no Administrativo também.
Há 4 anos ele é casado com sua primeira namorada. As mães eram amigas próximas, e desde que se entende por gente, convive com a esposa. Quando na quinta série, ela e a família se mudaram para o interior, e durante muitos anos pouco falou com a amiga, embora a criação do e-mail tenha ajudado no contato esporádico, aqui e ali.
Foi a mãe dele que lhe falou que ela tinha voltado.
Trocaram telefone e decidiram se encontrar.
– E como foi que vocês voltaram a ficar juntos?
– A gente começou a sair para ela se enturmar de novo, fazer amigos… Foi natural, quando a gente se deu conta, estava namorando.
Seus sonhos são simples, como ele: uma casa, ter um filho.
– Mas agora não dá, né?
Pergunto do pai, oculto da conversa.
Ele segura a resposta. É evidente que o assunto dói.
– Não tenho muito contato com ele.
Vamos pela lateral, que a porta da frente está fechada. Aos poucos, ele se sente mais confortável.
– Você tem irmãos?
– Tenho uma irmã, 10 anos mais velha que eu.
– Nossa! Porque tanto tempo assim entre um e outro?
A fresta da porta se fez escancarada.
– Por causa de minha mãe. Meu pai não era um bom pai, nem bom marido. Bebia muito, batia na minha mãe e na minha irmã. E ela não queria mais ter filho para entrar naquela vida, sabe? Pensou muitas vezes em largar dele, largou algumas vezes, mas acabava voltando… Ela dependia dele. Mas aí engravidou de mim, sem querer. E decidiu que eu não conviveria com aquilo. Pegou as coisas delas, os filhos e foi embora. Criou a gente sozinha.
– Você ainda tem contato com seu pai?
– Muito pouco. Há um tempo a gente começou a se falar mais. Foi estranho no começo, sabe? Afinal, apesar de ser meu pai, não havia qualquer sentimento bom meu com relação a ele. Tive que esquecer muita coisa. Ele mora na praia. Vive bêbado, mora com uma irmã, não trabalha e não tem onde cair morto. Por um tempo até tentei ajudar. Desisti. Não se pode ajudar quem não quer ser ajudado.
Sua voz fraqueja.
– E sua mãe?
– Ela está bem demais. Aposentou, mas continua ativa, mesmo com quase 70 anos, não para nunca. Vive pra lá e pra cá. Tem a casinha dela, o canto dela. Esse fim de semana a gente estava lá almoçando com ela no Domingo.
– Sua mãe é uma guerreira, cara!
– Muito. Criar dois filhos sozinha é complicado. Tenho muito orgulho dela.
Chegamos ao meu prédio. Peço para ele dar um abraço na esposa por mim, que ele promete fazer assim que chegar em casa. Na medida em que o carro se afasta, percebo que deveria ter tirado uma foto sua, dado um abraço nele.
Bruno Daniel é trabalhador de sonho pouco. Uma casinha para chamar de sua, um filho, ter o dele pingando todo mês para viver tranquilo. Tem para si a percepção de que sua história não é importante, não conta, não é relevante, postura de quem está acostumado a seguir em frente compreendendo a marcha, tendo que “saber seu lugar” de quem aprendeu que ser invisível é questão de sobrevivência.
Sua relutância me fez ver, uma vez mais, o quanto olhar para dentro é amedrontador, para todos nós.
Sua história é foda, cara.
E vai ficar tudo bem. Você já é sobrevivente.
Ambição é privilégio, meus amigos.
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