A trepidação do volante acusava: o Fiat Elba verde-algo, ano de fabricação 86, havia ultrapassado os oitenta por hora. A motorista amparava entre as pernas uma lata de Coca-Cola ―a vermelha, de verdade, não a diet―, deixando as duas mãos livres, uma para o dogão prensado e outra para o Marlboro aceso. O vermelho, de verdade.
Se viesse curva, o menino avisava, se passasse dos oitenta, a direção tremia. Não havia necessidade de passar marcha; a terceira era perfeitamente adequada a todo o trajeto, bastava pisar fundo na subida e aliviar na descida, técnica de manual.
O garoto, de uns 10 anos, falava sem parar no banco de trás, disputando, com o rádio ligado em um volume obsceno, decibéis e atenções. Talvez ele estivesse de cinto, talvez não. É provável que não. Tava sem cinto, a caipora do moleque.
E vinha garimpando aquele riso. O caminho inteiro. Aquele riso feio, gutural, quase um soluço, que ninguém ia dar de propósito, mas que, apesar disso, ou bem por isso, incluía, acumpliciava, mais que abraço atravessado, mais que beijo de obrigação.
E era só um riso.
― Mãe, passa a marcha, vai um pouco mais rápido.
― Devagar que eu tô com pressa. Seu vô Lima que diz.
E dava uma tragada no Marlboro, uma mordida no cachorrão. A Coca era pro final, uma só golada. O menino nunca mais viu alguém virar uma latinha de coca, da vermelha, a de verdade, de uma só golada. E dirigindo aquele trator.
Espetáculo.
A Elbinha 86 ligava sem chave. Pra girar a ignição, qualquer coisa minimamente achatada e dura. A tampa de uma Bic. Um grampo. Um pedaço de jornal bem amassado. Manter ligada é que era a coisa. Dia de frio tinha que ficar esquentando uma meia hora, afogador no talo, aquela fumaça branca na garagem, pro motor não morrer. Uma vez roubaram a Elbinha, que morreu dois quarteirões adiante. Um conhecido dos meus pais, desavisado, ajudou os ladrões a empurrarem, deu certo por três quarteirões, morreu de novo, largaram a Elbinha.
Caráter. A Elbinha tinha caráter.
― Leprento homem!
O motorista do caminhão perdeu a paciência, passou na curva mesmo, quase bate na Brasília que vinha do outro lado, teve de ouvir o xingamento.
― Mãe, foi o caminhão que passou a gente?
― Foi. Queria ver se tivesse guarda!
― Na subida?
― Na subida e na curva. Correndo feito um louco, eu nem sabia que caminhão corria assim.
― Mãe, você tá a quarenta por hora.
Sorocaba fica a sessenta quilômetros de Ibiúna. O menino passou toda uma infância achando que era muito, muito, muito longe.
― Mãe, o que é leprento?
Ali não tinha jeito. Ela tinha de jogar a segunda. Subida de terra, dia chovido, a terceira não dava conta. E a Elbinha pesada, camburão apinhado de moleque, recolhidos na cidade um a um, indo pra quadra da AABB jogar bola. Quem entrasse primeiro escolhia lugar. Todo mundo escolhia o camburão.
― Tia, tá patinando!
― É rali! Você nunca participou de rali, não?
E o rádio no talo. E a mulher batendo palma no compasso da música. E a molecada tudo garimpando aquele riso. Empreita simples, riso dado, mais fácil que ligar o motor da Elbinha. Qualquer meia-graça e pronto. Quando acontecia, o menino, filho único de muito irmão, se validava todo. Mãe, esse é meu amigo. Amigo, essa é minha mãe.
A Elbinha foi embora em 2001, vendida após 10 anos de reinado exclusivo. Sucedeu-lhe um Fiat Palio, preto, zero, que precisava de chave pra ligar e não avisava quando chegavam os oitenta.
E não tinha afogador, nem camburão, nem mais moleque pra ir no camburão.
O riso, aquele riso, também foi. Um pouco mais tarde, num domingo-outubro em 2007.
Às vezes passa uma Elba verde-algo na rua. Cada vez mais raro, mas às vezes passa. Ele procura pela placa, FR3936, amarela, daquelas antigas, que não existem mais.
É o menino, que também não existe mais, quem procura.
― Cumprimenta aquele, mãe!
― É, cumprimenta, tia!
― Calma, que não é assim. Tem que escolher bem. Aquele ali é palerma, nem adianta. Vai ficar só olhando. Tem que pegar as senhorinhas. As senhorinhas são tudo amiga minha. Olha lá aquela, Dona Judite, certeza que é Dona Judite!
― Cumprimenta, tia! Cumprimenta a Dona Judite!
A mulher desacelera a Elbinha, gira a manivela do vidro, monta um sorriso e cumprimenta a desconhecida. Não só cumprimenta, faz festinha. Pobre Dona Judite. Responde o cumprimento, meio hesitante, fica com aquele rosto de “quem será que é?”.
O carro segue, deixando um vestígio de risadas soluçantes.
Espetáculo.
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Artigo publicado na Papo de Galo_ revista #17, de 14 de maio de 2021, páginas 22 a 25.
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