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Ushuaia e o caiaque

Ushuaia e o caiaque

Turismo, para mim, vale a pena quando ultrapassa o tradicional que se vê em fotos prontas. Quando se adiciona história e cultura, porque prova de que estivemos em algum lugar é o menos relevante. Quando peguei a balsa em Staten Island, pouco me importou a Estátua da Liberdade, mas me encantei com Ellis Island. Por quê? Porque uma é um símbolo, algo para bater foto e não muito além disso. O outro tem guia, tem história, tem relevância. Milhares de pessoas entraram nos EUA por ali, e despejaram suas esperanças no novo mundo, sofrendo tanto quanto podiam. Ellis Island é vida.

Turismo é experiência. É coisa para dentro. Entender a cultura local, costumes. Um turismo humano, por assim dizer.

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Na passagem dos 13 para os 14 anos, fui viver com minha avó na casa do Santo Antônio. Minha memória, com mais frequência do que gostaria de admitir, me prega peças, e não sei dizer ao certo se foi nesta época ou antes, mas por um bom tempo eu pedi um caiaque de presente para minha avó. A casa não ficava perto da praia; ela não tinha carro; nem sei quanto custa um caiaque hoje, mas não é pouco, acredito. A velhinha deveria se perguntar que diabo de menino besta era aquele que queria um caiaque? Além do mais, certamente pensava onde haveria de botar o trambolho, ao que respondia a si mesma neste mesmo lugar onde você pensou.

Acredito que a solitária atuação do caiaquista me atraía. Dar um pulo ali em Itaparica e voltar. Cortar pela costa, de ponta a ponta, a Baía de Todos os Santos. Ir pra longe, ficar perdido nos meus botões, sem ninguém para me importunar.

Ou talvez fosse coisa de menino, mesmo. Vai saber.

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Os tradicionais de Ushuaia estão em polvorosa. Dizem por aqui que Puerto Williams, vilarejo ainda mais ao sul, quer se transformar em cidade, unicamente para abocanhar um pedaço maior de recursos do poder público e roubar para si a alcunha de Fin del Mundo.

Se o “fim do mundo” pode assumir conotação positiva e virar slogan, espero pelo embate efusivo da obtenção dos direitos do “fim da picada” e do “fim da linha”.

É tudo uma questão de entonação.

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Aqui em Ushuaia tem muito passeio para fazer. Tudo caro, caro, caro, porque se você já se deslocou para o fim do mundo, dinheiro (e vontade) tem para gastar. O cardápio inclui atividades para todos os gostos. Passeios de barco, 4×4, esqui, escalada, caminhadas, safaris e mais outros tantos, aos vários parques, bosques, lagos, canais, montanhas, e outros tantos pontos naturais do lugar. Realmente, aqui onde a América estica o dedo para tentar tocar o continente gelado, a natureza foi generosa.

Ontem fui a passeio verdadeiramente diferente. Um que tenho certeza de que lembrarei para sempre. Chama-se Sunset Kayaking, ou Caiaque ao Pôr-do-sol, proporcionado pelo Valle de Lobos.

Saímos do centro da cidade rumo ao Lago Escondido, a mais de 50 quilômetros de distância pela Ruta Nacional 3. O visual ao cruzar o Paso Garibaldi é de cair o queixo. No carro, uma família de mexicanos, eu e minha mãe e nosso guia, o Walter, também conhecido como o atual marido de minha ex-mulher.

Civilidade, a gente vê por aqui.

Walter, apesar de não nativo, vive aqui há quase 30 anos e é reconhecido na cidade como o melhor guia da região. Sabe tudo e mais um pouco de cada canto, das histórias, dos costumes, cria passeios de todos os tipos e entretém os turistas com facilidade. E ainda por cima cuida das crianças, meus filhos, com enorme carinho e paciência.

Saludos, Negro!

Vou dividir a embarcação com Frida, uma pequenina mexicana de 10 anos, que nas primeiras remadas já demonstrou habilidade natural com a atividade. Já na largada, primeiro problema: eu não caibo no caiaque. Eu grande demais, pernas muito compridas. Com muito custo consegui me fazer caber, não sem ter que abrir mão de um pouco de conforto, como, por exemplo, sentir minha perna direita, que dormiu depois de 15 segundos.

Saímos remando no Lago de águas calmíssimas com o sol se pondo. Lindíssimo. Walter conta que nem sempre é assim, que em alguns lugares pode ter ondas de até 4 metros! Melhor sem emoção, até porque estava incapacitado pela minha perna direita, que para mim existia apenas porque eu podia vê-la.

Atravessamos o lago e paramos numa margem adiante. Não consigo dizer quanto tempo remamos. Coisa boa não tem tempo. Saímos do barco e fomos guiados até um resguardo que foi feito pelo Walter com o filho dele, Pato, especialmente para este passeio. Ele monta uma fogueira e mais uma outra pequenina, que faria o jantar. Um suculento bife com batatas, cenoura, pimentão e cebola, para comer ali mesmo, nas coisas que vieram escondidas no caiaque e que todos ajudaram a carregar. Contamos histórias, dividimos experiência, o sol já há um tempo sumido, deixando o frio, o regougar das raposas em caça e um gato, que veio nos visitar e comer um pedaço de carne.

Na hora da volta, a última surpresa. Com a ajuda da falta de nuvens e o céu totalmente aberto, desligamos as pequenas lanternas que seguiam presas às nossas cabeças, e no meio do lago olhamos para cima para apreciar o céu.

Foi a primeira vez que vi o cordão da Via Láctea ali, ao vivo, no meio da água e do silêncio.

Tudo era algo mágico e algo surreal, absolutamente agradável. Do tipo de experiência que gruda e não solta mais. Quando o registro físico se transforma em memória afetiva.

Temos que apreciar momentos como este, que tanto nos ajudam a recolocar as coisas em perspectiva.

A gente não é nada neste mundo. O tamanho do que significa tudo aquilo que não compreendemos nos rebaixa à quase nulidade.

Só me resta, sentir, compreender, aprender e agradecer.

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