É véspera da abertura da Copa América. O mesmo pai, fanático por futebol, coloca o filho, agora com 8 anos, para dormir. Dentre as dificuldades que ele tem tido com a educação de seu filho está a de passar a paixão pelo clube do coração para a próxima geração. Ele vê seus esforços sendo aniquilados por times globais, que ganham dos clubes locais na escala de atratividade. A Copa América é mais uma tentativa para resolver de vez essa questão.
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São Paulo, 13 de junho de 2019, 22:19h
― Escovou os dentes direitinho?
― Sim! – o filho abre um largo sorriso mostrando a arcada com janelas quase inteiramente cobertas. O pai examina como se dentista fosse – é de suas melhores performances como expert em fingimento. Sorri em aprovação.
― Muito bem.
Mesmo lembrando da dificuldade que foi ter esta mesma conversa exatamente um ano antes, ele toma a iniciativa
― Filho, sabia que amanhã começa a Copa…
― Outra Copa do Mundo?
― Não, filho, não. Deixa o papai falar. Vai começar a Copa América.
― De futebol?
― Isso.
― Legal! E os Estados Unidos? Vai jogar?
― Não, filho. Não.
― Ué? Mas eles não são os Estados Unidos da América?
― Sim, este é o nome do país. Mas eles não vão jogar.
― Por quê?
― Porque eles não jogam a Copa América. Só jogam como convidados.
― Como assim?
― É porque eles disputam outra Copa, a da Concacaf.
― Então por que eles não mudam o nome pra Estados Unidos da Concacaf?
― Mas que maluquice é essa?
O pai percebe na hora que não pode reagir dessa maneira.
― Então, filho, é por causa da Confederação de futebol que cuida de cada continente.
― Mas então o Estados Unidos não fica na América?
― Fica. O continente é a América.
― Ué? Mas se as confederações cuidam de cada continente, e o continente é a América, onde que fica os Estados Unidos?
― Ai, meu santo… É que no caso, a América se dividiu em duas. Tem a América do Sul e a América Central e do Norte.
― Em três. – o filho fala corrigindo o pai.
― Pro futebol, são duas. A América do Sul é a Conmebol; as Américas Central e do Norte formam uma outra, a Concacaf. Entendeu?
― Acho que sim… – ele coça a cabeça como quem não tivesse entendido. E ele mesmo retoma. – Mas pelo menos vai ter um monte de gente do Real Madri, né?
― Vai! Vai ter o…
― Vinicius Junior! Ele joga muito, né? – o filho corta o pai no meio.
― Joga muito mesmo, mas não vai jogar a Copa América.
― Ué? Por quê?
― Porque ele não foi convocado.
― Mas no Brasil não jogam os melhores jogadores?
― Jogam, mas é o técnico que escolhe.
― E como não escolheu ele?
O pai ficou sem palavras. Afinal, se não conseguia nem ele entender por quê Willian foi chamado, imagine explicar? Apelou para o argumento de autoridade.
― Porque o Tite não quis.
― Hm… E o Neymar não vai jogar, né?
― Não. Ele foi…
― Expulso, né?
― Expulso?
― É! Eu não entendi direito, mas o Tio Mário falou que teve uma mulher aí que tentou alguma coisa com ele e acabou quebrando as pernas… Daí ele tomou cartão vermelho por isso, né?
― Não! E que história é essa de mulher com o Neymar e não sei o quê? Isso não é pra sua idade. Eu já falei pra você não se meter com essa gente!
― Mas ele é seu irmão!
― Não importa. Já não basta aquela besteirada toda de Messi e Barcelona no ano passado.
― Isso quer dizer que eu não vou poder usar a camisa que eles me deram de aniversário?
― A do Messi?
― É.
― Claro que não.
― Mas pai!
― Não tem mais pai, nem menos pai. Vai com a sua do Brasil. Está novinha.
― Tá bom… – o garoto consente em óbvia frustração. Mas quer retomar a conexão com o pai. – E quem vai jogar amanhã?
― Brasil e Bolívia, aqui em São Paulo!
― Legal! Bolívia é aquele time que joga todo mundo de máscara, né?
― Como é?
― É! Tem um cara no YouTube que se chama Bolívia e fala com um monte de jogador de futebol fazendo entrevista. E ele usa uma máscara.
― Ahn?
― É, pai! Olha aqui, ó. – o filho pega o celular pra mostrar pro pai. Ele vê por um minuto e balança a cabeça em negação.
― Não, nada a ver! Esse aí é brasileiro. No caso, vão jogar contra a seleção da Bolívia, com jogadores que nasceram na Bolívia.
― E por quê ele se chama Bolíva?
― E eu lá sei? Até um minuto atrás eu nem sabia que ele existia!
― Deve ser que nem os Estados Unidos, né? Que se chama Estados Unidos da América, mas deveria se chamar Estados Unidos da Concacaf.
O pai sente uma lágrima escorrer de um olho. E grita:
― Amoooooooor! Vem cá!
A esposa abre a porta do quarto com cuidado.
― Tudo bem aqui?
― Vai, sua vez. ‘Tó que o filho é teu.
Ela nem tem tempo de retrucar. Ele já levanta deixando o quarto. E antes de fechar a porta ainda ouve o filho perguntando:
― Mãe, é verdade que se o Messi fosse brasileiro ele ia se chamar Lionel Messinho?
Ele sorri. A lógica do menino é realmente impressionante.
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