Corre o ano de 2010. É noite de sábado e você está praticando isolamento social – involuntário – muito antes de ser modinha. Ou urgência sanitária. A economia corre bem, o dólar está baixo, a terra ainda é redonda. A frase “que Bolsonaro?” é usada pra exprimir um saudável desconhecimento, e não pra descobrir a qual dos quatro congêneres a pessoa se refere. Você de novo se esqueceu de passar na locadora pra apanhar algum DVD. Liga a televisão, que remédio, pra assistir ao Zorra Total.
E aí.
O HORROR.
Quatro adultos vestidos de crianças se amontoam em um sofá cenográfico gigante, perninhas balouçantes. A ideia é fazer com que os atores pareçam menores no contraste com o desproporcionado objeto. Nenhuma preocupação com escala uatissôuever. O resultado, claro, é de uma bizarria inaceitável até pra uma geração que cresceu exposta aos aerolitos de isopor do Chapolin.
O ano agora é 2021. É noite de sábado, e você está praticando isolamento social porque, enfim, existe um vírus matando 2.000 brasileiros por dia. A demora na imunização torna o país um celeiro de variantes virais, cada vez mais agressivas. E, mais uma vez, cortaram a Netflix porque você esqueceu de colocar no débito automático. Resolve ligar a smartv pra assistir ao noticiário, que remédio.
E aí
O HORROR.
Um adulto está sentado em uma cadeira, vestindo a camisa de algum time de futebol. Exaltado, rosto crispado, dispara palavrões em direção à câmera. O vernáculo e a estética dão a entender que se trata de algum policialesco pinga-sangue. Allborghetti vem à mente. Mas não. Trata-se do Presidente da República, que se pronuncia sobre a maior crise sanitária da nossa época.
Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando? Não podemos ser um país de maricas.
O disparatado da situação exige algum esforço de boa-fé. Você pegou o papo pela metade, não quer tirar conclusões precipitadas. O presidente, lá do jeito dele, apenas nos motiva a enfrentar com galhardia esta situação difícil. Poderia muito bem estar parafraseando Churchill, que disse: “se você está atravessando o inferno, não pare”. Trata-se de um chamado à ação, uma elegia ao brasileiro e sua fibra.
O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele.
Ok, ok, então talvez ele não tenha o refinamento de um Churchill. Mas a ideia não muda. Até resolvermos essa “cuestão da pandemia aí”, temos que aguentar firme, sem mimimi, usando máscara e ficando em casa, pra não morrer mais gente, o presidente tá certo.
Falam tanto em máscara, “o presidente sem máscara”. Não encheu o saco ainda, não? Isso é uma ficção. A proteção da máscara é praticamente zero. Vocês não entrem nessa conversinha mole de “ficar em casa, a economia a gente vê depois.” Isso é para os fracos.
Tá, sem máscara e sem isolamento. Parece estranho, porque vai totalmente contra o consenso da comunidade científica. Mas o homem é o Chefe do Executivo, né? Ele não ia colocar a população em risco, jamais falaria sem estar amparado em dados científicos sólidos. É confiar. E, se for pensar bem, o que vai resolver mesmo é a vacina, o negócio é focar na vacina!
Eu não vou tomar vacina. E ponto final. Se você virar um jacaré, é problema de você. Se nascer barba em alguma mulher aí ou um homem começar a falar fino, eles (os fabricantes) não têm nada a ver com isso.
Você está confuso. Não quer virar jacaré, definitivamente não. Imagina o trabalho pra passar fio dental. Mas sair sem máscara, recusar vacina? Ser acusado de mimimi por chorar seus mortos?
Um fenômeno começa a ocorrer. Você percebe que, a cada frase, perdigoto a perdigoto, o presidente vai se encolhendo, fisicamente mesmo, ou será que é o cenário que está aumentando?
Você entende todo o discurso. É preciso ajustar a pandemia, ainda que por um truque cenográfico, ao tamanho do líder encarregado de enfrentá-la. É urgente que se trate de apenas uma gripezinha. Mesmo que isso signifique mais mortes.
Ao final do pronunciamento, um homenzinho vocifera, perninhas balouçantes, de uma enorme cadeira presidencial, aberrantemente maior que seu ocupante. A câmera fecha em um menino, olhar assustado, e você sente uma súbita falta das bizarrices do Zorra Total.
Crônica publicada na Papo de Galo_ revista #13, de 17 de março de 2021, páginas 68 a 70.
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