Lendo agora
Vardemá, Papuru, Interior de Ibiúna

Vardemá, Papuru, Interior de Ibiúna

Talvez que ele se agradasse mesmo de ver o pau quebrando. Mas dizem que não, que era outra coisa. Fato é que ficava lá, barzinho ao lado do campo – seu campo, seu bar -, coçando bicho-de-pé, chupando laranja e bicando a caninha perpétua que repousava na coxa esquerda, e ela ficava ali paradinha. Paruru, interior de Ibiúna, fim de século. Fossem apartar briga, e sempre estourava briga, não se opunha tanto, mas achava ruim. Está claro que achava ruim.

― Deixa, menino, que a bugrada se entende.

Vardemá era o nome, mas Vardemá ele achava empombado. Ali pros da casa – e todo mundo por ali era da casa -, era o Var, seu Var do Paruru, entra e toma uma aqui, menino, diz o que passa. Quase que nada não falava, e todo mundo ouvia. A turma do Machado inclusive, que sempre tava lá disputando várzea e briga. Futebol e porrada em dia de domingo, que dia de semana era lida desde madrugada, ali todo mundo. Carecia de futebol e porrada dia de domingo: seu Var sabia, e deixava, não apartava. Nunca deu coisa mais grave, ali era tudo irmão de lombo crestado, deixa brigar, desopila. Depois senta aqui, menino, toma uma, diz o que passa.

Mas naquele dia foi diferente.

Era briga ruim, briga de boca, coisa que não se resolvia. Deu assim. Decisão de festival, Paruru x Machado, segundo tempo alto, 0x0 renhido. O ponta do Machado recebe sem ângulo, faz que vai cruzar, se encarapita todo e manda o petardo daquele jeito mesmo, torto que só. A bola ninguém não viu bem certo onde passou, só conta que bateu na rede, aquela rede desprendida do gramado, e foi se enrolando toda, emaranhando um bombom de branca embalagem, dependurada no travessão feito uma preguiça. O ponta, experimentada puta velha, sai comemorando o gol, no que Tião Baleia, diligente árbitro, acorda e no susto confirma o tento.

Toda caboclada pra cima do bom juiz, os onze do Paruru, o técnico, o pai-de-santo, o gandula. “Entrou por fora, juiz cego do caralho”, e o povo do Machado já engamelando também pra equilibrar: “entrou por dentro, juiz bunda-mole do cacete”, modo que a Tião Baleia só restou recolher sua dignidade e sair do campo em protesto, “tomábanho, seu Var, esses bugre não respeita otoridade”, retomando os deveres em sua respeitável banca de jogo do bicho.

Campo sem juiz, briga sem final, o bom homem teve de intervir. Afastou a caninha da coxa, calçou a sandália e desceu ao campo, passo cadenciado. O silêncio que formou se ouvia lá da cidade. Se achegou da rede desfigurada, e, paciencioso, começou a desenrolar a bola da rede, até que, finalmente, a redonda se desprendeu do véu e caiu limpinha na grama, bem na porção de dentro do gol. Entrou por dentro!

― Taí, caipora. Gol do Machado ―  e voltou pra caninha, desassustado.

O raro leitor e a distinta leitora já terão percebido do que trata esta crônica: a primeiríssima vez que um jogo de futebol foi decidido pelo recurso tecnológico do VAR.

No caso, Vardemá do Paruru, interior de Ibiúna, estória melhor que verdadeira.


Crônica foi publicada posteriormente na Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021, páginas 59 a 61.


Carnaval, Papo de Galo, revista, Gabriel Galo,
Capa da Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021.

Assine nossa newsletter!

Conteúdo exclusivo e 100% autoral, direto no seu email.


Contribua!

Antes de você sair…. Tudo o que você lê, ouve e assiste aqui no Papo de Galo é essencialmente grátis. Inclusive o que escreve em outros lugares vêm pra cá, sem paywall. Mas vem muito mais pela frente! Os planos para criar cada vez mais conteúdo exclusivo e 100% autoral são muitos: a Papo de Galo_ revista é só o primeiro passo. Vem por aí podcasts, vídeos, séries… não há limites para o que pode ser feito! Mas para isso eu preciso muito de sua ajuda.

Você pode contribuir de diversas maneiras. O mais rápido e simples: assinando a newsletter. Isso abre a porta pra gente chegar diretamente até você, sem cliques adicionais. Tem mais. Você pode compartilhar este artigo com seus amigos, por exemplo. É fácil, e os botões estão logo aqui abaixo. Você também pode seguir a gente nas redes sociais (no Facebook AQUI e AQUI, no Instagram AQUI e AQUI e, principalmente, no Twitter, minha rede social favorita, AQUI). Mais do que seguir, participe dos debates, comentando, compartilhando, convidando outras pessoas. Com isso, o que a gente faz aqui ganha mais alcance, mais visibilidade.

Livros!

Ah! E tem também os meus livros! “Futebol é uma Matrioska de Surpresas” (2018), com contos e crônicas sobre a Copa do Mundo da Rússia, está em fase de finalização de sua segunda edição. Além disso, em dezembro de 2020 lancei meus 2 livros novos de contos e crônicas, disponíveis aqui mesmo na minha loja virtual: “A inescapável breguice do amor” e “Não aperte minha mente“.

Apoie: assine a Papo de Galo!

Mas tem algo ainda mais poderoso. Se você gosta do que eu escrevo, você pode contribuir com uma quantia que puder e não vá lhe fazer falta. Estas pequenas doações muito ajudam a todos nós e cria um compromisso de permanecer produzindo, sem abrir mão da qualidade e da postura firme nos nossos ideais. Com isso, você incentiva a mídia independente e se torna apoiador do pequeno produtor de informações. E eu agradeço imensamente. Aqui você acessa e apoia minha vaquinha virtual no no Apoia.se.


Ver Comentários (0)

Deixe um comentário

Seu e-mail jamais será publicado.

© Papo de Galo, desde 2009. Gabriel Galo, desde 1982.