A DESCOBERTA
Desde muito novo Decinho descobriu a fórmula do sucesso. Fiou-se na necessidade. Sempre muito baixinho, primeiro era magro demais. Por conta do excesso de Biotônico com ovo de pata que sua vó lhe empurrava goela abaixo, foi de um extremo a outro. Engordou de monta e de vez, já no início do ano letivo seguinte, 13 anos, oitava série começando. Não é de se espantar que os colegas lhe maltratassem o juízo, coisa ruim que é essa classe de gente chamada criança.
A regra era a mesma de tantos meninos e meninas mundo afora, esculhambados pelos mais normais, mais altos, mais magros, mais esportistas, mais burros.
Pois numa manhã de sexta-feira o mundo de Decinho mudou.
A aula de educação física, o ápice do sofrimento para os como ele, estava para começar. Sentado num banco do lado da quadra, ele viu um grupo dos animais enchedores de saco se aproximar. Já meio retado porque não tinha banana real na cantina, aquele dia ele não podia aguentar mais um tanto de pirraças. No que o grupo foi se aproximando, ele encarou firmemente o líder do bando. Já a cerca de 3 metros de distância, sem nem se levantar do banco, apontou o dedo para a cara do sacana e largou com o máximo de impetuosidade que pôde reunir:
– Você se saia!
Olhava firmemente para o grupo e preocupava-se em não demonstrar que lhe tremiam as pernas.
Foi quando o milagre se fez; fez-se luz em seu viver.
Desacostumados a serem confrontados e entendendo aquele olhar determinado de que o gordo e diminuto garoto lutaria de volta e poderia até apanhar, mas levaria pelo menos um com ele para a enfermaria. Os dois assistentes pararam, olharam-se e encostando a mão no ombro do que ia na frente, afastaram-se vagarosamente. O ponteiro ainda ficou encarando o resoluto Decinho, até que perdeu a guerra de olhares, abaixou a cabeça, e seguiu seu rumo.
Sorriu aliviado, mas, principalmente, de alegria! Por segurança dos outros, foi o primeiro a ser escolhido no time. Pense!
Cresceu neste esquema, o Decinho.
VIRANDO HOMEM
No mundo profissional percebeu que era uma excelente estratégia de negociação. Fez fortuna comprando empresas em estado pré-falimentar e recuperando suas finanças para vendê-las com grande lucro.
– A minha proposta para comprar sua empresa é a que está neste envelope. — Sempre começava falando o ainda gordo jovem.
O outro lado da mesa abria a bíblia e ao ver os números que claramente não lhe agradavam, iniciava um retruque “Mas, Décio, você…” que era prontamente interrompido pelo seu mantra:
– Você se saia!
Não dava nem tempo do oponente lhe arguir nada. Ganhava sempre. Para vender depois, então, era ainda mais relevante a interação. Sempre ele começando.
– O preço de venda é esse que está no envelope.
Observava a reação do comprador. Ao menor sinal de que não era exatamente o que ele tinha em mente, já sacava do coldre, o gatilho mais rápido do mundo dos negócios.
– Você se saia!
Ganhou rios de dinheiro.
A FALTA DE AR
Uma grande chuva baixou sobre Salvador numa noite de quinta-feira. Mas não pense que foi dessas que até ajudam a lavar a janela, não. Foi das grandes e das grossas. Derrubou árvores, alagou ruas, provocou acidentes, uma loucura. Por sorte, Décio já em casa havia chegado, mas quando foi apertar o botão do elevador, viu tudo se apagar e as luzes de emergência se atenderem.
“Fodeu”, pensou carinhosamente.
Morava na cobertura de um prédio de mais de 20 andares no Corredor da Vitória, único lugar da cidade onde se atrevia a morar, porque julgava que o nome da glória lhe fazia jus. Tinha um certo pé na megalomania o já senhor – e ainda mais gordo – homem.
Resolveu arriscar.
Começou a passos curtos, mas determinados, subindo degrau a degrau com a leveza de um mamute jogando bola. Passou do subsolo ao térreo, do térreo ao primeiro, e no meio da subida para o segundo, sentou para descansar. Tomou ar, voltou, mas apenas mais três degraus acima, foi obrigado a parar. Faltava-lhe o ar. Puxava-o em grandes goladas, mas pouco lhe inflava os maltratados pulmões. Fechou os olhos, como se conversando com sua máquina corpórea, ordenando funcionamento pleno.
Atirou, mas acertou o alvo errado, o que foi bom para ele. Naquele segundo, voltou a luz. Aliviado, desceu de volta ao primeiro andar, chamou a máquina elevador e subiu contente para sua casa.
Aquela falta de ar, no entanto, ficou na sua mente por tempo demasiado. Antes de dormir, resolveu que se consultaria com um médico o quanto antes.
DOUTOR
Sua secretária marcou uma consulta numa das clínicas mais importantes da cidade. Limpou a agenda da tarde para lhe garantir tranquilidade. No horário marcado, estavam os dois sentados, um de frente para o outro. Entre ele uma grande mesa de tampo de vidro, que exibia itens relacionados à medicina ou à família. Muitos diplomas pendurados na parede. Havia credenciais, certamente.
Décio contou seu entrevero escada acima. Podia até jurar ter sentido uma pontada no peito e uma certa coceira no braço esquerdo. O Doutor varreu seu questionário de perguntas padrão e outras nem tanto, tomando o histórico do paciente. Depois do interrogatório, buscou seu receituário e com ele em mãos, começou a escrever, folha a folha, a batelada de exames aos quais nosso herói haveria de se submeter.
Ele ouviu resignado. Tomou para si o calhamaço de notas com letra indecifrável, agradecendo ao Doutor e prometendo pronto retorno. Voltou para a empresa, entregou tudo na mão da secretária, “providencie tudo para o quanto antes. Limpe o dia para isso.”
Assim ela fez, e dois dias depois ele trocou sua habitual camisa, calça social e sapato por um roupão de bunda de fora de certo laboratório especializado. Parecia que haviam fechado o andar para que ele pudesse ser atendido. Andou em esteira, pedalou em bicicleta, conectaram cabos em seu coração, em sua cabeça, em seus membros, retiraram fluidos de locais que ele não descreveu quais foram nem sob tortura, entrou em máquinas deitado, de pé. De tudo, um pouco, uma farra da saúde maquinada! No fim do dia, cansado, lanchava um pão sem graça com suco de caixinha esperando seu carro para voltar para casa, e só conseguia pensar “que saco isso”.
Ele não era assim tão tolo de achar que aquela falta de ar nada significava. Estava claramente acima do peso, muito acima, diziam alguns, mas sempre que alguém vinha lhe alertar sobre o assunto, apenas respondia:
– Você se saia!
Retorno agendado com o Doutor.
O enjalecado senhor tomou para si todos os exames, analisou a todos com calma. Décio conhecia aquela feição de desaprovação na cara do médico. É importante que lembremos que o rechonchudo estava condicionado a reagir de apenas uma maneira às palavras que acompanhavam aquela cara.
– É, Décio. O quadro não é nada bom. Precisamos iniciar um processo de reeducação total de…
– Você se saia!
Deixou a sala com uma lista de remédios na mão, era o máximo a que poderia se sujeitar. Parou numa farmácia, conta batendo na casa de milhares de reais. “É a porra!”, comprou a primeira leva, para não mais fazê-lo.
A CHUVA E O JUÍZO FINAL
Sentiu-se até melhor no primeiro mês com os remédios em mãos. Estava mais disposto, embora fisicamente fosse o mesmo de antes. Acreditava ter burlado as regras da saúde, sugerindo que uma boa medicação fosse mais do que suficiente.
Mas não foi.
Ali pelo terceiro mês, outra chuva. Ainda mais densa e pesada que a outra. A falta de luz. O martírio da escada acima até a cobertura.
Animado pelos remédios que lhe garantiam fôlego adicional, começou quase saltitando os degraus. Do subsolo ao térreo, de lá para o primeiro, atingiu o segundo andar. Evoluíra, ao final! No caminho para o terceiro, no entanto, a dor veio fulminante, no que o derrubou ao piso da escada de vez.
Em sua frente, a morte lhe encarava. Toda de preto e foice na mão, ela olhava com aquele olhar de Lobo Mau para os 3 Porquinhos. Avançava lentamente em sua direção, subindo as escadas.
Percebendo o que lhe aguardava, acuado, Décio agiu da única maneira que lhe era conhecida. Reunindo suas últimas forças, determinado!, apontou o dedo na cara da senhora do destino e bradou:
– Você se saia!
A morte parou, hesitando. Para logo em seguida retomar seu passo lento.
No que se aproximava, ouvia Décio e sua generosa gargalhada. A cada passo mais perto, mais alto ele se ria. Ria de se contorcer.
Percebeu que seu mantra de uma vida não era capaz de frear o inevitável. Mas, ela hesitou! Na sua batalha final com o inescapável, atingira o máximo possível.
Antes do toque derradeiro, ele ainda falou:
– Porra! Você parou!
– Não me subestime!
– Já foi, minha filha! — e ria.
Estava realizado. Estava pleno.
Para de supetão ser tocado pelo beijo que a tudo para.
***