Lendo agora
Zagueiro-zagueiro

Zagueiro-zagueiro

Sábado, sol a pino. Era a Copa Veraneio, semifinal entre o Terrão da Vila Guilherme contra o Boleiros do Tatuapé, no estádio do Nacional. O Terrão tinha feito a melhor campanha da primeira fase, melhor ataque, melhor defesa. Tinha o artilheiro do campeonato, o Vitinho, moleque ainda com bigodinho ralo nunca aparado, mesmo com seus já 23 anos. Bom de bola demais. Diziam que tinha treinado um tempo no Palmeiras, foi cortado porque os caras não queriam pagar sua passagem de ônibus. Ou talvez fosse por sempre chegar atrasado, mas esta história não teria apelo nenhum na roda de amigos, finca-se a bandeira do injustiçado.

O capitão do time era o Necão. Zagueiro-zagueiro, de botar medo e de botar pra correr. Mistura de Lúcio com Júnior Baiano. Enorme, forte, tinha o cotovelo mais duro da várzea. Já mais velho, 38 anos, separado, três filhos homens e “o maior consumidor de Derby do Brasil”, como ele mesmo colocava.

Necão abraçou o Vitinho como seu protegido. Garantiu que o moleque se sentiria bem-vindo na equipe. Explicou os trotes, a iniciação, o esquema tático, as regras.

Para onde se olhava era sempre um incentivo, uma palavra de ânimo. Assumiu o papel de pai do Vitinho, que aceitou de muito bom grado, sem pai ele próprio, nenhum ser em casa para mandar tirar aquele fiapo de puberdade do rosto. O do Necão foi preso quando ele tinha apenas 6 anos, nunca mais voltou. Era uma guerra de compensações e redefinições de papéis.

Aconteceu duas noites antes do jogo. Necão esperava ansioso pela chegada do Vitinho, que apareceu com a Dejanira, a quem tinha conhecido havia poucas semanas, num baile ali perto. O semblante do Necão, ao ver a cena, mudou completamente. Bebeu. Bebeu muito. Bebeu de dar vexame.

Certo momento, no banheiro, encontrou com o Vitinho.

– Quem é essazinha aí?
– Qual é, Necão! Fala assim da Dejanira, não!
– Porra, Vitinho… Será que tu não percebeu ainda?

Tendo como resposta a cara de não sei-do-que-você-está-falando, Necão avançou e tentou forçar um beijo do Vitinho, no exato momento em que entrava o Biro-Biro, volante que usava o cabelo do homônimo, e cuja única reação foi um “que porra é essa?”

Combinaram ali que não comentariam com ninguém. Faltavam dois dias para a semifinal, ninguém podia ficar sabendo.

No dia do jogo, não houve palavras de ânimo. Vitinho, avoado, perdia bolas fáceis, errava passes de meio metro, fugia do contato. Necão não falava, não orientava o time, nem impunha medo a ninguém. Ainda no começo do primeiro tempo, entregou uma saída de bola nos pés do Juva, centroavante do Boleiros, que completou para o gol, para desespero do Agenor, goleiro do Terrão.

– Porra, Necão! Tá com a cabeça onde?

Necão engoliu seco.

Insosso, o jogo seguiu e o Terrão não cumpriu sua sina de favorito.

Ao se reunirem no centro do campo, roda fechada, Necão assume à frente. Como capitão do time, era este o seu papel. Pede desculpas pelo erro, pelo jogo todo. Quando, para surpresa de todos, reunindo toda coragem que pudesse ter, se ajoelhou no centro do círculo, de frente para o Vitinho. Era necessário extravasar, liberar a angústia que sentia! E ali se declarou. De olhos vermelhos, marejados e aterrorizados, abriu seu coração.

Todos se entreolhavam, não acreditando. Logo o Necão? Um a um, todos foram saindo da roda, em silêncio. Vitinho ficou até o final, e, quando todos já não estavam mais lá, abraçou o amigo e disse-lhe algo no pé do ouvido. Ninguém nunca soube o quê.

Foi o último jogo do Terrão.

Rotina diária de alguns meses, a jogar sinuca num boteco na Vila Guiherme, Necão olha de minuto para a porta do bar, como a esperar  por alguém que nunca chega. Não mais soube do Vitinho, a não ser pelo Biro-Biro, único do time com quem ainda fala, que ele logo engravidou a Dejanira.

– Aquelazinha nunca vai estar à altura dele, cochichou para si com desdém.

Suspira, acende um cigarro e pede quase gritando uma cerveja que lhe complete o copo vazio.

Ver Comentários (0)

Deixe um comentário

Seu e-mail jamais será publicado.

© Papo de Galo, desde 2009. Gabriel Galo, desde 1982.