Lendo agora
Zoloft ou cloroquina?

Zoloft ou cloroquina?

zoloft, cloroquina, vacina, Eduardo Galduróz, Gabriel Galo, revista, Papo de Galo

A junta psiquiátrica que me atende (ordem judicial se cumpre) finalmente acertou a dose da sertralina, de maneira que eu, pessimista-niilista-ceticista, venho operando em um insuportável modo “Olívia, o labrador bebeu todo o Santo Daime”, até bom-dia família em grupo de zap eu ando postando.

Com frases motivacionais.

Atribuídas a Clarice Lispector.

O momento não podia ser pior. Segunda onda da pandemia, mais de duzentas mil mortes, risco real de colapso do sistema de saúde  (se é que já não colapsou – o cronista, esse pobre-diabo, escreve sempre do passado), e qualquer laivo de otimismo tem um quê de deslocado, feito um peixe na árvore, feito um general no Ministério da Saúde.

Em tempos assim, aparecer com alguma saúde mental é arriscar fazer cosplay de Nana

Gouveia no furacão. Não orna. Representa mal.

Não chegarei, é claro, à ignomínia namastê de sair por aí apregoando “o lado bom da pandemia”, e, são Nietzsche me proteja, não me supreenderão dizendo que “sairemos melhores de tudo isso”. Não há Zoloft que dê pra tanto.

Mas, em abono a esse meu estúrdio otimismo, há agora o alento da vacina. Há essa maravilhosa enfermeira Mônica. Viúva, periférica, diplomada. Hipertensa, diabética, arrimo de família. Você conhece a Mônica. Olha no ponto de ônibus. Olha na fila da farmácia popular, do postinho. Mônica é aquela nossa tia, aquela nossa mãe. Ônibus e metrô todo dia, direto pra linha de frente. A coragem, irmão, não anda armada nem fala grosso. A coragem é uma enfermeira preta pegando condução de madrugada.

E veja você, talvez seja a sertralina falando, mas eu estou de fato TORCENDO pra vacina dar certo. Manga arregaçada pra virar jacaré, disposto a ter meu DNA alterado (piorar não piora), ansioso pela implantação do chip (quem sabe melhora o 4g do Motorola). Acredita?

Se tem uma coisa que eu aprendi, nesses anos de polarização política e pega-pra-capar em grupos de zap (parei; ultimamente, só bons dias clariceanos), é que torcida conta muito. Conta mais, aparentemente, que um plano nacional de vacinação estruturado, políticas baseadas em dados científicos, manifestações públicas que não estimulem a população a sair pra pegar o vírus na porrada. Não, nada disso. O que importa, fiquei sabendo, é torcer direitinho.

Arte: Gabriel Galo

A lição vem lá das eleições de 2018. Corria outubro, o resultado acabava de ser divulgado e minha bolha era assolada por uma endemia de pessimismo. As prometidas políticas de austeridade assustavam, havia quem temesse que o morrer de fome, o morrer por falta de comida, voltasse a ser um problema. Soava exagero. Hoje, morre-se asfixiado, por falta de oxigênio. Parece que a turma não foi pessimista o suficiente.

Mas o mantra do outro lado era o de que não poderíamos TORCER contra. Se a gente torcesse contra, não ia dar certo, percebe? O Brasil é um navio, diziam, em sofisticada metáfora. O presidente é o capitão. Se o navio afundar, morrem todos. E a culpa, é claro, terá sido da galera que mandou afluentes de energia negativa ao bravo comandante.

Imagine, portanto, qual não foi a minha surpresa ao me deparar com esse rolê da good vibes, essa patota da energia positiva – adivinhem? – comemorando que a eficácia da vacina era de “apenas” 50%. Quer dizer, não pode torcer contra o governo? Irmão, tu tá torcendo contra a vacina!

Contra.

Uma.

Vacina.

(os inimigos do cidadão de bem estão cada vez mais exóticos).

Basicamente: o tal do navio está afundando, parte dos tripulantes já se afogou, aparece o MAGAIVER que, com três pacotes de biscoito Globo e uma figurinha do Bebeto, consegue desenvolver uns botes infláveis, e o nosso campeoníssimo patriota… torce pra esvaziarem.

Manaus mesmo. Final do ano, após as aglomerações natalinas, o governo do Estado, prevendo o absolutamente previsível, decretou novo lockdown. No Brasil não se pode fazer o óbvio, tampouco o necessário. A turma o-importante-é-a-economia organizou protesto e pressão. A decisão foi revogada no dia seguinte. Comemoração nas redes: torcida conta, lembra?

Menos de um mês depois, é claro, surto de internações. Não havia oxigênio pra todo mundo, e esse todo mundo incluía bebês prematuros. No Hospital Universitário, uma ala inteira de pacientes morreu asfixiada. Faltava ar, pra viver e pra morrer.

Já temos quase um ano de pandemia. Há informação. Há dados científicos. Há o SUS, com estrutura pronta de campanhas de vacinação anteriores. Há maioria no Congresso para aprovar qualquer medida sanitária que se queira aprovar. Há uma enorme parcela da população pronta para seguir o que quer que o governo diga. O que ainda justifica o negacionismo? Como alegar que não se pode fazer nada?

Chega. Meu Zoloft, coitado, já não tá dando conta. Vocês conseguiram deprimir um labrador. Tô achando que é mais negócio substituir a sertralina por cloroquina mesmo. Abraçar o negacionismo e ser ridiculamente feliz, espalhando notícia infundada no zap, chamando dado científico de mimimi, acreditando, pro bem da minha saúde mental, que é só uma gripezinha.

Mas a vacina, ah, essa eu ainda tomo. Em rio de piranha, meu amigo, jacaré nada de costas. Já dizia Clarice Lispector.

Arte: Gabriel Galo

Crônica de Eduardo Galduróz para a Papo de Galo_ revista #10, de 29 de janeiro de 2021, páginas 42 a 44.


Monica Calazans, Coronavac, pandemia, Butantan, vacina, Eleições EUA, Papo de Galo, revista,
Capa da Papo de Galo_ revista #10, de 29 de janeiro de 2021.

Assine nossa newsletter!

Conteúdo exclusivo e 100% autoral, direto no seu email.


Contribua!

Antes de você sair…. Tudo o que você lê, ouve e assiste aqui no Papo de Galo é essencialmente grátis. Inclusive o que escreve em outros lugares vêm pra cá, sem paywall. Mas vem muito mais pela frente! Os planos para criar cada vez mais conteúdo exclusivo e 100% autoral são muitos: a Papo de Galo_ revista é só o primeiro passo. Vem por aí podcasts, vídeos, séries… não há limites para o que pode ser feito! Mas para isso eu preciso muito de sua ajuda.

Você pode contribuir de diversas maneiras. O mais rápido e simples: assinando a newsletter. Isso abre a porta pra gente chegar diretamente até você, sem cliques adicionais. Tem mais. Você pode compartilhar este artigo com seus amigos, por exemplo. É fácil, e os botões estão logo aqui abaixo. Você também pode seguir a gente nas redes sociais (no Facebook AQUI e AQUI, no Instagram AQUI e AQUI e, principalmente, no Twitter, minha rede social favorita, AQUI). Mais do que seguir, participe dos debates, comentando, compartilhando, convidando outras pessoas. Com isso, o que a gente faz aqui ganha mais alcance, mais visibilidade.

Livros!

Ah! E tem também os meus livros! “Futebol é uma Matrioska de Surpresas” (2018), com contos e crônicas sobre a Copa do Mundo da Rússia, está em fase de finalização de sua segunda edição. Além disso, em dezembro de 2020 lancei meus 2 livros novos de contos e crônicas, disponíveis aqui mesmo na minha loja virtual: “A inescapável breguice do amor” e “Não aperte minha mente“.

Apoie: assine a Papo de Galo!

Mas tem algo ainda mais poderoso. Se você gosta do que eu escrevo, você pode contribuir com uma quantia que puder e não vá lhe fazer falta. Estas pequenas doações muito ajudam a todos nós e cria um compromisso de permanecer produzindo, sem abrir mão da qualidade e da postura firme nos nossos ideais. Com isso, você incentiva a mídia independente e se torna apoiador do pequeno produtor de informações. E eu agradeço imensamente. Aqui você acessa e apoia minha vaquinha virtual no no Apoia.se.


Ver Comentários (0)

Deixe um comentário

Seu e-mail jamais será publicado.

© Papo de Galo, desde 2009. Gabriel Galo, desde 1982.