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A casa do Santo Antônio

A casa do Santo Antônio

A gente acordava cedo na casa de minha avó, no Santo Antônio. Lembranças em cheiro, lembranças em sons. O pino da panela de pressão já preparando o feijão do almoço; o papagaio que falava sem parar; se era dia de Célia, as duas velhinhas conversando animadas na cozinha, e no quando em quando, uma, ou outra, descia à área de serviço.

A casa de pouca frente, mas comprida.

À tarde, eu sentado na mesa da sala de jantar, fazendo lição de casa, enquanto no rádio cantava Marisa Monte, Bem que se quis. Coisas que a mente guarda, sem muito ter nem por que.

Os netos chamando a avó quando acordavam, eu incluído, ora, e lá vinha a velhinha cheia de amor para dar para ajudar no despertar. Acordar com chamego de vó não tem preço.

Às 18 horas em ponto, tradição mantida por apenas uma rádio hoje em dia, o mundo parava para ouvir a Ave Maria de Schubert. Não me fez nem católico nem religioso, mas era de uma simbologia ímpar. Tradições ajudam a manter a memória de um lugar e aumentar o sentimento de pertencimento.

No cair do dia, preparava-se uma panela enorme de polenta cozida, com alguns pedaços de carne, que era a ração dos cachorros. Dois pastores, um alemão e um belga, e eu morria de medo dos danados. O cheiro azedo da polenta em cozimento invadia a casa, me embrulhava o estômago, e me faz correr de milho até hoje. Minha avó despejava direto da panela na bacia de comida de cada um, que vinham felizes e famintos aproveitar a ceia.

Minha surpresa, isso quando já mais velho, mas ainda guri, descobri que estávamos tão perto do Pelourinho. Como assim se guarda uma informação valiosa dessa por tantos anos? Basta seguir em frente, sentido oposto ao Largo, no rumo da Cruz do Pascoal, quando carro não era impedido de passar, e atravessávamos as ladeiras do Centro Histórico no antigo Monza de meu avô, voltando da escola.

Varrendo fotos antigas, encontro uma com os primos sentados no batente da porta, todo mundo pequeno e gordo. Numa outra, tem um até sentado no batente da janela da sala de visitas.

A grande sala de visitas, logo na entrada da casa, vivia fechada. Só gente célebre era digna do feito de ser recebida no recinto, embora eu ache que o pouco uso era muito mais por medo de abrir a janela. Dizia minha avó que a criminalidade andava nas alturas pelo bairro, e não queria ninguém espiando dentro de casa. E eu olhando em volta, me perguntando “e vão levar o quê?” Tinha um jogo de sofá que acumulava uma poeira danada, uma cadeira de balanço já antiga, uma mesa lateral com tampo pesado que ela dizia ser de mármore e um cabideiro com espelho, que eu assumo ter sido, um dia, depósito de chapéus e guarda-chuvas dos entrantes. Tudo cheirando a guardado.

Um quadro na parede. Lindo. Um barco a vela no pôr-do-sol.

Não sei onde está este quadro. Minha avó prometeu me dar, mas ela já não lembra, como também já não lembra de quase tudo e muita coisa. Da última vez que o vi, estava enrolado num papel atrás do guarda-roupa dela.

O quarto dos fundos que dava para o porto de Salvador, onde o sol se põe. Em época de transatlântico, lá vinha ela mostrar quais eram. Tinha um certo orgulho daquilo, embora eu não visse muita graça em transatlântico, nem conseguia entender por que era tão legal ter um atracado no porto. Até hoje não entendo, posso apenas confabular.

A escada íngreme que levava para os quartos de cima, onde um dia, um deles foi o meu e de meus irmãos. No sótão, com um socavão que ela dizia para nunca entrar, que poderíamos cair na sala de visitas, pela fragilidade das vigas. Se já pela porta a sala de visitas não podia ser acessada, pelo socavão é que não haveria de ser. Ora! E eu me perguntava que diabos menino ia fazer no socavão? Ficava valendo o aviso.

Durante muitos anos, o reboco da antiga construção à mostra. O roído da serragem, trabalho de cupins a corroer a madeira de pisos, vigas, mesas, e mais qualquer coisa que do material fosse. Você comendo e o farelo se misturando com a farinha. O piso em cerâmica, muitos partidos, outros sem pintura, já gastos.

No banheiro, a água que descia quase sem pressão, fazendo do banho um exercício, sobretudo, de paciência. Ali, também, sempre a última edição de Domingo do A Tarde.

Foram muitos anos naquela casa.

Quando por ela passo, tudo o que se desfez na rigidez dos sempre problemáticos relacionamentos familiares é deixado de lado. Mas há muito lá não entro. Não suportaria vê-la envelhecer sem formosura, entregue ao tempo e ao seio do “não tenho nada com isso”, vendo o tempo fazer companhia aos cupins.

E eu me pego, vez ou outra, me perguntando onde anda o quadro.

Entendo os guardadores de relíquias. Se tudo o que me resta são lembranças e algumas parcas fotografias, um item preservado é a representação de que não estamos ficando loucos, que ali um dia estivemos, de lá viemos e por ali fomos moldados. É real, saca?

Ficaria muito legal aqui na sala de casa. Me dando a oportunidade de, sempre que eu quiser, poder voltar para o dia em que eu era apenas um quase-ninguém querendo apenas o dengo da avó.

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