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Casamata

Casamata

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No devastado da guerra que consumiu os campos, praças, edifícios e almas da cidade, permanecia, imponente e patética, a casamata. Cercada de escombros, choro e sangue, apontava para fora, no sentido de quem vinha, proteção dos monumentos da urbe abandonada à própria falta de sorte. Pela pequena brecha, projeto de janela, o nariz do canhão ainda fumegante respirava, atribuição recente de um período que apagou o antes. A história seria contada a partir da batalha.

Ao que se propôs, falhou. Se nasceu para proteção do patrimônio do que atrás se construiu, serviu tão somente para autopreservação. Enquanto tudo mais não mais era, a casamata permanecia. Vazia, inócua, com o desenho de um iglu. Uma espinha na pele carcomida, indesejada.

***

A guerra se aproximava. Ouvia-se ao longe, pelas ondas do rádio, pelo boca-a-boca, que conflito estava armado, que a capital estava tomada, que o exército nacional pouco poderia fazer. “Para mudar a bandeira, é um, dois.” O profeta, religioso local e dito homem santo, anunciava o fim dos tempos, “logo aqui chega e adeus”, alerta emitido que fazia ruborizar as moças e gelar os moços e todos cobrirem a boca segurando o sacrilégio. “Ave Maria, homem, não fale um negócio desse que atrai! É pecado!” E o profeta retrucava “pecado é quem comete o senhor da guerra. Apenas os inocentes caem. E Deus está do lado mais fraco, do lado de quem precisa.”

Voltava o povo, então, aos seus alfarrábios tentando mensurar o pecado, conhecido e restrito ao âmbito privado – somos seres de pecado, afinal – que consumasse a tragédia. Qual o tamanho da soma pecaminosa que justificasse tão lamurioso fim? Qual era, afinal, a medida do merecimento?

Povoou-se a certeza de que nada aconteceria, porque na matemática do carma celestial, a conta não fechava. “Somos seres de bem, mal não fazemos, sequer importamos, por que morreremos?” A guerra haveria de ser lutada ao longe, na capital, nos de ganância e nos de exploração. “Erguei as mãos ao céu, ó sofrido povo, porque não há limite para o sofrimento, a não ser o dos desígnios de Deus!” Assim apregoava o profeta, com livro em mãos, ar um tanto senil, um tanto amedrontado, um tanto resignado.

Bastou não muito, surgiu pelotão com caminhão e material. Chegou na calada da noite, acordando a vila porque barulho mais do que nenhum parecia muito. Descarregaram das caçambas gente, cimento, pás, e o que mais necessário fosse. Aldeões que se fizeram curiosos dos pontos donde olhar alcançasse, olhavam pelas frestas das janelas, a espiar. Dado senhor de patente abria aquilo que seguramente era um mapa e apontou para quatro capachos as direções de para onde haveriam de seguir. Estes obedeceram sem titubear, aglomerando os seus e avançando na direção do dedo do líder.

Quando manhã se fez, sinal dos combatentes planejadores não havia – na calada chegaram, na surdina sumiram –, mas seus rastros não deixaram dúvida: estava na hora da guerra. Nos quatro pontos principais de entrada da cidade, em construção simplória e sem acabamento, ergueram-se, corcundas, as quatro casamatas.

Ali estavam elas, ali se assentaram, dominando a estrada, com janela apontada para os forasteiros. “Serei sua fortaleza!” lia-se na lateral perto da minúscula entrada tratada como porta. O burburinho aumentou. Não era mais ao longe, as evidências da batalha que se aproximava estavam ao alcance dos dedos. A oca oca dentro não se foi preenchida, exceto pelo canhão único que decorava o insípido ambiente.

“Chegou! Chegou! O apocalipse aqui se faz. De que se faz fugir, se assim ordena e planeja Deus? Fiquemos e aceitemos suas vontades, pois seus planos não aceitam contestação. Quem somos nós para questionar os mandos daquele que tudo sabe e tudo vê?”

Naquele dia, boa parte dos aldeões pongou no que tinha de transporte, abandonado lares e vida pregressa. Já não se dormia, o silêncio da noite foi substituído pelo barulho da insônia e da preocupação. “Por quê, meu Deus, por quê?”

Amanheceu o dia com o profeta tendo dormido dentro de uma das casamatas. Com o fluxo de exílio voluntário, procurou desconvencer os que se iam. “Frouxos! Covardes! Aqueles que se afastam dos planos de Deus, mesmo que representados pela própria morte, morrerão pelo pecado! A morte honrada é o capítulo final da vida, para que nos prados da vida eterna, nos encontremos, enfim, com nosso senhor!” Famílias cruzavam fingir não ouvir, sinais da cruz se multiplicavam como a abanar afastando o mau agouro. Abaixavam a cabeça, envergonhados. Melhor que morte honrosa é viver. O medo da morte era maior que o amor ao divino. Afinal, que tinham mesmo feito eles para merecer tal tormenta?

Mais três dias. Foi o tempo que passou para que quase a vila inteira tivesse largado para trás o que não viam como importante. Deixou-se o que pesa, o que não se carrega, o que não se vende, o que não alimenta.  Restou, por fim, solitário, o profeta, com ares grandiloquentes de loucura.

***

O primeiro bombardeiro veio atravessando o ar com seu chiado, terminando em explosão. Seu repentino soar deu eco na queda dos primeiros barracos que antes eram abrigo. O estampido acordou o profeta, que guardou lugar atrás do canhão, a postos para a batalha. “Já chega o exército nacional, com a fé de nosso senhor!”, tentava convencer-se. Mal sabia ele que o deus da guerra peleia do lado mais forte.

Tal qual os moradores, talvez tenha o exército abandonado a cidade. Ou talvez estivessem certos os céticos de antanho, que importância teria a vila? Nenhuma, no que as quatro casamatas seriam arremedos de encorpamento de um sentimento de relevância. “Estamos aqui por vocês!”, coisa de moral, de motivação, que efeito nenhum provocara dada a evacuação completa. Não havia exército nacional porque não havia o quê ser defendido.

Sendo o primeiro disparo inimigo não respondido, o profeta viu-se desacompanhado, mártir de ninguém, herói sem testemunhas a não ser do olho que tudo vê. Percebeu, então, também que o objeto de sua crença partira daquele lugar a outro. Sozinho, nada era, que diferença faria se não mais fosse?

Ouviu, ao fundo, o barulho dos tanques que se aproximavam. Os inimigos caminhavam a passos decididos rumo à entrada sul. O horizonte ajustava-se aos seus olhos atordoados quando reparou na insígnia azul escuro no uniforme verde oliva do pelotão oposto. Sua respiração aumentava em baforadas juntamente com a raiva, que sempre pregou contra  –  dizia em seus sermões “domai a ira, sede interventores do vosso sentimento com apoio no mau.” –, tomar-lhe o juízo. Lutava contra aquele furor que em chamas ardia suas entranhas. E num estupor impensado, acendeu fogo no pavio do canhão da casamata onde agora morava, direcionado aos combatentes inimigos que irrompiam a estrada.

Um estrondo seco ecoou pela construção, temporariamente ensurdecendo-o. Atônito, caiu, fora de si, no chão. Despertou poucos segundos depois, com sua audição lentamente em recuperação. Ouvia chiados, explosões, desmoronamentos. Viu a ofensiva verde-oliva de insígnia azul avançando raivosa rumo à cidade, que tombava na figura das construções que, uma a uma, eram não mais do que farelo.

Apercebendo-se de seu erro, chorou, então, implorando piedade. Ajoelhou-se, mas viu na abóbada da casamata o limite que não permitiria o contato com Deus. Saiu cambaleando à rua, rojões a sobrevoar-lhe a cabeça, crucifixo em punho. “Perdoai-me, senhor! Perdoai-me, pois pequei! Duvidei de vossa bondade e vosso caminho. Pecador que sou, aceito sua fúria. Dai-me a penitência que julgares merecida e a aceitarei servo, pois nada sou diante de seu poder!” Ajoelhou-se com as mãos de palmas viradas aos céus, cabeça quebrada para baixo, pois assimilara que não mais seria, e duvidava se jamais tinha sido.

Numa rajada de metralhadora que varou-lhe as costas, a penitência divina não tardou.

***

O comboio de tanques e exército a pé ultrapassou a casamata, que respirava a fumaça do canhão recém-disparado. O general, chamado ao front para avaliar a situação, pausou por uns segundos diante do profeta, estirado desfigurado no piso empoeirado de escombros molhados pelo viscoso sangue que dele escorria e manchava em avanço lento pela caída do desnível.

“Este foi o único que sobrou, General. A cidade está totalmente abandonada. Foi ele que disparou o canhão daquela casamata.”

Resoluto e orientador de toda sua emoção, deixou escapar certa decepção pela falta de resistência. Orgulhoso que era, queria a fama da vitória conquistada a suor e sangue e perspicácia.

“Saqueem tudo o que encontrarem que for útil. Depois, derrubem tudo. Não quero ver pedra sobre pedra. Se nem os daqui se importaram, por que haveria eu de ligar? Mas deixem a casamata livre, de pé. Essa porcaria um dia pode ser útil.”

O desfile de exército em formação desviava, assim, da casamata, respeitando a ordem transmitida pelo General. Invadiam qualquer construção em busca de algo valioso, normalmente sem resultado. “Diabo de lugar é esse? Tem nem um que preste!”, soldados bradavam. Depois da batalha e da queda da cidade sem importância, nada de proveitoso se afortunava encontrar.

No enquanto o dia se esvaia, a última parte da comitiva achegava-se. Era tenda carregada como carruagem. Nela, General e família se mantinham, na retaguarda extrema de onde as primeiras baionetas se posicionavam, a cento e oitenta graus do soldado raso que guerreava uma guerra que não era sua. Evidenciava-se a clareza da guerra de resultado óbvio, pois assentamento que aceita família, perigo não corre.

Quando atingiram o centro da praça que se avolumava pouco após a casamata, o filho do General deu-se a correr. Subiu ao alto da casamata, matreiro como criança arredia que era, não mais do que oito anos, pondo-se de pé no centro de seu cume. Era o rei da praça, o bastião da casamata. Riu-se por dentro de seu personagem. Avistou o profeta ainda estatelado no chão da praça. Com braços posicionados como se fossem uma arma de fogo, simulou metralhar o corpo do combatente solitário. “Como ousa afrontar-me?” Tatatatatatatatá.

Neste instante, o único sobrevivente da cidade-que-não-importa aproximou-se com o rabo entre as pernas da casamata. Analisava, com seu olhar absorto de incompreensão, o garoto, seu ratatatá. O menino cruzou olhar com o cão, que era a imagem da subserviência e do desespero. O menino sentiu um aperto no peito, enternecido pela situação lamentável do animal.

A mulher do General veio correndo ter com ele. “Desce já daí!”

Ele despongou da casamata, lamentando.

“Mas mãe!”

“Hora de comer. E deixe dessas brincadeiras. Brincar de matar é feio.”

“E o que papai faz?”

“Mas o papai faz porque está certo. Se estivesse errado, não faria.”

A mãe tomou-lhe o braço um tanto ríspida.

“E sem mais perguntas!”

Puxou-o num solavanco para o longe. Ele ainda olhou para trás, buscando o cão que fora invisível aos olhos opressores da mãe preocupada. Sorriu para o bicho, que nada pôde fazer a não ser observá-lo ir, para na sequência aconchegar-se na casamata, que seria seu lar.

***

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