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Duas músicas

Duas músicas

i.

Passeávamos em Salvador, em uma das minhas muitas idas recentes à província mais bela e besta do mundo. Confesso que tentei buscar mais detalhes da ocasião além do que será relatado, mas traído pela minha memória armazenada, abri mão. Era mais uma questão de estética linguística, entende? Sequer consigo me lembrar se eu dirigia ou se meu pai dirigia, mas é certo que estávamos no carro com Angélica, e na Rádio Educadora começou a tocar Minhas Razões, de Antonio Carlos e Jocafi. Qualquer que fosse o assunto, a partir daquele momento, foi meu pai destilando a falar de coisas da época, de como a dupla de baianos era queridinha de trilhas sonoras da Globo, muito embora hoje sejam quase que completos desconhecidos, de por que adorava aquela música – que é realmente deliciosa. Falava de sorriso nos olhos, e vez em quando fechava, cantava junto, e fazia suas danças esquisitas no ritmo da canção. Era um de seus momentos mais honestos, mais espontâneos, mais felizes. Esses gatilhos de memória o deixavam verdadeiramente nas estrelas.

ii.

A rotina de visitas ao hospital durante a última internação de meu pai era estafante. A UTI tinha apenas dois horários de visita, das 11h às 12h e das 15h às 16:30h, com boletim médico às 17h. O Hospital do Subúrbio fica longe. Minha rotina, nas quase duas semanas que fiquei em Salvador acompanhando meu pai, era a seguinte: acordava muito cedo, deixava Angélica no trabalho, e dali seguia para onde fosse. Perto das 10h eu saía rumo ao Hospital do Subúrbio, onde passaria aquela hora a conversar sem resposta ou reação. Seguia para a Tancredo Neves, almoçava com Angélica, e ficava fazendo hora até que desse a hora de irmos novamente rumo à periferia, para que ela também pudesse conversa sozinha com ele. Depois era uma jogada total para estarmos os dois a ouvir o boletim médico do dia, já que apenas um por vez poderia entrar. Para lá dentro fazer as mesmas perguntas para o médico de plantão, tudo de novo e ouvir sempre as mesmas respostas. Assim era todo santo dia. Eu o vi de olhos abertos e reagindo, mas sem falar apenas nos últimos 2 ou 3 dias de minha estada em Soterópolis. Depois, quando já podia falar e eu lá mais não estava, Angélica me contava que ele não se lembrava. Para mim, no entanto, falou, sim. Falou com os olhos, fez palhaçada como podia, pediu para que eu não fosse embora. Era ele ali, via-se a alma como ela se lhe fazia transparecer.

O quadro não era bom, e isso sabíamos desde o dia 1. Some-se a isso, a vida dentro de um trabalho que fazia mais mal do que bem à mais do que companheira esposa que ele tinha, era um cenário nada agradável. O mundo parecia estar todo contra ela.

Numa das voltas para casa, cansados de mais um dia sem grande evolução, a mesma rádio Educadora começa a gritar os acordes de Babá Alapalá, clássico maravilhoso de Gilberto Gil, na voz de Rita Ribeiro, em versão de guitarras pesadas, acordes rapidamente reconhecidos.

Angélica, então, se entregou. Encontrou seu escape.

No carro, já noite na Bahia, ela se deixou levar pelo encanto daqueles 3 minutos. Extravasou. Cantava alto. Dançava, fechava os olhos, se entregava. Encontrou, sem querer, seu escape, sua fuga, um lugar seguro para onde poderia fugir sem haver problemas e complicações. Mais do que isso: ela precisava daquilo. Precisava de um momento que não fosse choro ou desabafo, em que não sentisse vontade de gritar. Queria encontrar uma razão para sorrir, para alienar-se.

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As duas músicas estão do rol das músicas que eu mais gosto. Viraram preferidas. Cada uma com sua circunstância, sua história. Seu fator mais do que estético e artístico: humano. Ouço entrega e prazer, na forma mais pura.

E me emociono de me partir o coração.

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Ver Comentários (2)
  • Amei! Me vi no carro com vocês em ambas situações! Estive também no hospital e sei exatamente do que falas! As músicas, que já faziam parte de minha lista de preferidas, estão no topo!!!!

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