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Mãe em tempo integral

Mãe em tempo integral

– Filho.
– Que é, mãe? Responde o Julinho, já imaginando o que vem pela frente.
– Eu já te contei da vez em que a gente foi viajar pro interior de carro, e o seu pai engoliu uma abelha quando foi tomar um suco de laranja, e…
– Já, mãe. Ontem, inclusive.

Julinho já chegava aos 14, adolescência desnorteava a mãe. Segundo ele, já tinha ouvido todas as histórias dela. Não que o Julinho fosse um filho complicado, longe disso. A puberdade que chegara assustava Dona Vânia, que queria que o menino conversasse com um homem sobre essa nova fase.

O pai se foi quando ele tinha 4 anos. Saiu para fazer mercado pro fim de semana, lista em punho, nunca mais voltou. O mercado é o novo cigarro.

Cabeça de adolescente, sabe como é… Até pensava “se meu pai tinha que ouvir essas histórias todos os dias, até entendo ter ido embora”. Veja que despautério!

Julinho tinha sido muito desejado. Planejado, o que era novidade na família da Vânia. Sua irmã Vanda teve filho com 16 anos, ficou para sempre presa ao interior do Paraná. O mais velho, Valdir, engravidou a Maria quando ela tinha 14 e ele 18.

Já o pai tinha família mais estruturada. Tanto que conseguiu levar a Vânia para São Paulo. Ele se dedicava à carreira, ela à casa, casamento à moda antiga, exceto pelo uso de anticoncepcionais.

Quando veio o Julinho, o mundo de Vânia se tornou o pequeno. Era 24/7 na função. Mãe em tempo integral. Recusava-se a ter babá, ou sequer ajudante. Era uma super mãe, todas as amigas achavam isso. Algumas até a invejavam, estava certa de que sim. Pesquisava a melhor dieta para a criança. O melhor jeito de ninar. De pôr para dormir.

– Não consigo imaginar a minha vida sem o Julinho! Dizia orgulhosa.

Acontece que tudo na vida da Vânia era ser mãe.

Quando o pai chegava em casa, era um tal de cobrança pra todo lado…

– Cuida da criança! Você quase não vê o seu filho, dê atenção pra ele! Vai responder esse email agora? Não quer saber se é urgente! Olha a janta!

Fins de semana eram um terror.

– Acordou. Vai, corre, faz a mamadeira que eu vou lá pegá-lo. Mas a temperatura não está boa! Será que eu tenho que fazer tudo nessa casa? E essa roupa no chão? Você acha o que, que eu sou sua empregada? Depois temos que ir ao mercado, comprar um presente pro aniversário do coleguinha dele de sala, minha mãe vai passar aqui antes do almoço, hoje você prepara o almoço, à tarde tem passeio no parque, mas tem que preparar a bolsa inteira dele, não vai esquecer o lenço umedecido que nem da outra vez. Quer saber? Deixa que eu faço isso. Na volta, tem a mamadeira, eu faço a janta e você dá, mas antes tem o banho, e tomara que ela durma essa noite, não estou aguentando mais de cansada. Ah, e amanhã…

Coitado, não tinha nem voz, nem dava tempo de falar nada, a não ser “um-hum”.

À noite, ele se aconchegava, cheio de carinho.

– Mas a gente nem marcou nada pra hoje!, respondia ela, num bom dia. Nos outros, era um tal de “Estou cansada”, que evoluía para “Sério? Depois do dia de hoje?” até um “Ah, para, vai. Que chatice!”

Ele acreditava que era uma fase. Depois de uma fase de quase 5 anos – não se esqueçam da gravidez – sem nem muito pensar, sugeriu ir sozinho ao mercado enquanto ela fazia o almoço, um casal pais de um amigo do Julinho iam almoçar em casa, “e eles são tão fofos! Sabia que o filho deles já escrevia o nome com 3 anos? Não é o máximo?”

Foi, e não mais voltou.

Menino bom, era o Julinho. Boas notas. Tranquilo… Nunca deu trabalho para a mãe.

Mal sabe ela que o pai fala com o filho diariamente. Se veem depois da aula. Almoçam juntos uns dias. Cada fim de semana de viagem na escola, de dormir na casa de um amigo, está com o pai em algum lugar.

Foi ele que explicou para o Julinho.

Para aceitar, para ouvir. Para entender.

Que tem gente que se dedica inteiramente ao outro. E que a mãe dele era o caso. Que exigia o mesmo grau de dedicação do outro, e que quem coloca metas próprias no alheio, sozinho fica.

Ambos sabiam. Vânia também sabia. Vivia na corda bamba. Sabia que o amor extremo, que sufocava, poderia afastar o filho. Perdera um, não suportaria perder outro. Soltava a corda e apertava a rédea em movimentos esquizofrênicos. Para ele vivia, e perdeu a identidade.

– Meu filho é tudo para mim. Sempre fui mãe, apenas mãe, e não me arrependo nem um pouco.

Era verdade, ele era tudo para ela. Porque outro não havia. E quem há de demonstrar arrependimento que contradiga uma vida inteira?

– Filho.
– Que é, mãe?
– Eu já te contei da vez em que a gente foi viajar pro interior de carro, e o seu pai engoliu uma abelha quando foi tomar um suco de laranja, e…
– Já, mãe. Ontem, inclusive. Mas eu adoro essa história. Conta de novo?

E lá ia Vânia, alma renovada.

Esse menino vale ouro.

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