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Paralisia pelo calor

Paralisia pelo calor

Estava eu assistindo a algum desses canais de bicho a TV a cabo – não me pergunte por quê, só sei que foi assim. No episódio do dia, as câmeras e a narração em off detalhavam o comportamento das futuras mamães crocodilo cuidando dos ovos que um dia seriam filhotes. Eis que uma mamãe crocodilo, teimosa, “eu sei o que eu estou fazendo, mãe sabe dessas coisas”, se afastou do bando para ter sua ninhada onde ninguém lhe perturbasse o juízo.

Fê-lo (segurem, jânios, um fê-lo direto nuzói) mesmo contrariando o conhecimento evolutivo. Reza o aprendizado que, sozinha, lutaria contra todos os outros bichos que viveriam para roubar seus ovos. Dito e feito.

Veio, então, um lagarto do capeta, que atazanava a vida da mãe dia e noite, querendo garantir a gemada que repusesse a energia. Assim, nessa toada, ficaram brincando de pega-pega, com invariavelmente o lagarto sendo expulso.

Até o dia em que um calor infernal se abateu sobre o local. A mãe buscava, de todas as formas, se refrescar. Mas não poderia se afastar muito, porque, afinal, o lagarto lazarento vinha, malandro, correndo, contribuir para a extinção da família.

Só que no exagero da função, a mãe jacaré se cansou de tanto ficar afugentando o lagarto desgracento. Não tinha vassoura que desse jeito, nem rolo de macarrão, nem chinela Havaiana. Ela, então, cansada, se recostou debaixo de um bonsai-gigante que fabricava diminuta sombra, abriu a bocarra, esbaforida, expirando calor, inspirando asma e ali ficou.

O lagarto, impiedoso, criatura do demônio, começou a se aproximar. Percebendo, por fim, a mãe inapta, começou a sacar, um a um, os ovos dos buracos.

Era um que saía, e a mãe pensava: “leva mesmo. Isso aí cresce e não respeita mais ninguém!”

Outro virava alimento, “é até melhor assim, isso aí dá um trabalho danado!”

Mais um que era sugado com voracidade, “e o quanto custa? Até a faculdade sustentando esses ingratos.”

Minha amiga, elegante e sincera, de shortinho Gerasamba e top de barriga de fora, ou meu amigo portentoso de regata, sunga e tênis, ouçam com atenção as palavras da salvação: EU ENTENDO a mamãe crocodilo.

[Tenha sua calma, vossa senhoria, guarde esse seu dedinho levantado, desamarre a carranca, porque, mais a mais, a questão não é de (pro) criação, mas meramente meteorológica.]

Porque, suando em bicas, com a camisa melada, declarando juras de amor a qualquer ar-condicionado que eu vejo pela rua, saudando ventiladores e respeitando qualquer sombra que valha, afirmo: sofro de paralisia pelo calor.

“Ah, lá vem baiano querendo inventar desculpa pra não fazer nada.” Já pensa a maledicente senhora.

Não, pessoa — e digo ‘pessoa’ me segurando para não ofender — tem nada disso nem com isso. É que quando o calor desértico se abate, vale lembrar que minha cabeça está mais próxima do sol. Além do mais, devo respeitar os aspectos fisiológicos de meu ser, que exige temperaturas amenas, 10 horas de sono por dia e pelo menos duas sonecas reparadoras. “Conhece-te a ti mesmo.”, diria o filósofo. Sigo rigorosamente suas instruções.

Assim, transporto-me para a posição daquela mamãe crocodilo. (Empatia, a gente vê por aqui.) Pode ser a situação que for, povo correndo gritando desesperado, “fujam para as montanhas!”, “vai morrer!”, se estiver calor demais, que se lasque. Ele me acomete, me paralisa.

Eu sei, pois, exatamente pelo que esta dona crocodilo está passando. Ela não tem nem uma piscininha, nem uma caipirinha de frutas vermelhas, nem um garçom pouco vestido trazendo água de coco pronto a satisfazer suas vontades de quase-mãe. Porque o calor excessivo vem, imobiliza, e você começa a criar justificativa para tudo de ruim.

― A filha da Jacarilda resolveu que era independente, agora taí, virou bolsa na Europa.

― E o menino da Crocodilva? Se joga no chão, quebra tudo as louças, faz uma birra insuportável. Agora só quer saber de gnu pra comer. Se não tiver gnu, faz escândalo.

No ato, o aplicativo de clima do meu celular aponta: hoje vai passar com folga dos 30 graus.

Começo a derreter na cadeira do escritório. As costas grudam no assento, suo em cada junta escorrendo gotas pelos membros, os dedos grudam no teclado, um desconforto só. Tem um ventilador ligado, que passa e passa, para lá e para cá, baforando uma brisa quente e seca.

Olho no relógio. Passaram-se 45 minutos desde a última vez que estive consciente.

Lembro da mamãe crocodilo. Estaria eu de boca aberta, inerte?

No automático, sigo para o quarto. Fecho as portas. Ligo o ar-condicionado, para sorrir com o barulho do condensador sendo acordado. Deito-me procurando posição. Garanto, enfim, a soneca, torcendo para que quando eu voltar o mundo continue no mesmo lugar, meus ovos estejam intocados, porque, da última vez que eu chequei, não tinha lagarto zombeteiro nenhum rondando meu terreiro.

***

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