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Sobre Valter Hugo Mãe

Sobre Valter Hugo Mãe

Depois de muito adiar, de tanto ouvir dizer, de tanto “como não?”, entrei numa Livraria Cultura e me abasteci de duas obras de Valter Hugo Mãe, minhas primeiras. Em pouco tempo, “a máquina de fazer espanhóis” foi devorado, na velocidade de um instante e de uma ida e vinda aérea.

A volúpia literária de Mãe, já tão elogiada por gente como Saramago, que o qualificou como o “tsunami linguístico”, me aplicou uma rasteira, e sem eira nem beira, caí no seu mundo.

Não vou aqui comentar de sua obra, não se trata de uma crítica, nem de avaliação. Vou falar de sua técnica.

Mãe não usa pontuação além de vírgulas, pontos e eventuais dois pontos. Não há aspas, interrogação ou exclamação. Não há maiúsculas para iniciar uma frase. Os parágrafos são extensos, por vezes, página e mais.

Para quem lê, a primeira sensação é de desconforto, de inquietude.

Quem é que está falando agora?

Isso foi uma pergunta?

Acompanhar as linhas de Mãe exige atenção completa. Nada de ler e ficar de olho nalgo mais, na TV que está ligada à sua frente. Não. Há de se desligar de todo o exterior para que foco esteja ali, sem compartilhamento. Além disso, exige um grande esforço para que haja compreensão. Um contínuo ir e voltar, reler, buscar entender, para que se faça a luz do sentido.

Reler é obrigatório. Aprende-se a reler.

E aí você se pergunta: por que isso?

Não posso falar sobre as intenções do autor, mas posso avaliar as consequências que esta técnica provoca.

A primeira, é de seleção de público. Para ler, é mandatório estar totalmente disponível, desapegar-se do externo para viver a narrativa. Aqueles que dizem “não tenho tempo” não passarão. Continuar suas páginas implica obter audiência cativa. Quem se atreve a romper a barreira e segue está à mercê da qualidade literária do autor, porque ruídos foram anulados. A esta disponibilidade de atenção é adicionada uma grande dose de brio, o que me faz lembrar de uma aula do Prof. Clóvis de Barros Filho. Nela, ele fala do brio – ou de culhão, em linguajar mais cotidiano – que alguém deve sentir quando lê um determinado trecho de um livro e não o entende. “Como assim eu não entendi?”, e você volta, porque aquilo ali tem que ser assimilado, ora, se não! Questão de honra. Este mesmo efeito se aplica às obras do angolano. Há de se querer seguir, persistir, resistir. Assim, temos uma seleção natural de leitores, o que culmina em um perfil de público altamente desejável, embora potencialmente restritivo: motivado e focado.

Daí que outros efeitos se fazem com o passar e o entender do método. É aí que reside o espanto.

Antes, um pouco de contexto sobre como funciona nossa mente, e trago aqui credenciais de gigantes do estudo de como funcionamos. Fique comigo porque o negócio é legal, garanto.

Daniel Kahneman escreveu no seu “Rápido e Devagar” sobre o consciente e o consciente, que chamou de sistema 1 e sistema 2, respectivamente. O consciente é lento: assimila as informações e processa. O inconsciente é rápido: cruza as tantas informações recebidas e já cospe uma decisão. Em último estágio, o físico Leonard Mlodinow afirma que o consciente é uma mera racionalização de uma decisão já tomada pelo inconsciente.

Um bom exemplo de como estes sistemas funcionam é o aprender a dirigir. No começo, o sistema 1 age fortemente, pois você está assimilando conceitos, muitas novas informações. Com o tempo, com a prática, você dirige sem raciocinar sobre o que está fazendo. Vai “no automático”. É o inconsciente (ou sistema 2) que roda agora, que comanda as ações.

Este efeito é semelhante ao ler Mãe.

O começo é lento, você está em contato com um mundo novo, uma escrita diferente, que foge das regras tradicionais. Armazena-se uma frase, para ler a seguinte, estudar como uma se liga à outra, para daí, sim, saber a construção que se encaixa, se se tratava uma pergunta, uma fala, uma exclamação, ou algo mais. O que acontece com o desenrolar da história é que, por mais incrível que pareça, chega-se a um ponto em que haver a pontuação completa sequer é mais necessária. O leitor automática e instintivamente distingue, processa, avalia e entende na velocidade da própria leitura. É Daniel Kahneman em sua tradução para aplicação literária. Ao ponto de que, eis lá!, galopa-se um capítulo inteiro com interrogações, maiúsculas, aspas. Volta-se por um átimo para o tradicional, para, no capítulo seguinte, ele retomar a técnica de esforço. E você nem se deu conta de houve mudança.

É um assombro vermos como se realiza, na prática, nossa adaptação mental.

Claro, isto exige uma qualidade narrativa sublime: uma frase deve se conectar à outra de maneira a concluir a construção sem deixar pontas soltas. E Mãe não as deixa, amarra tudo de um jeito que prende.

Quem passa por um tsunami pode se considerar um sobrevivente. Ainda que haja sequelas, e haverá, porque quem se diz incólume, ou mente ou não entendeu. Mudado está, sim, senhor.

No que se provoca um efeito arrebatador ao leitor: chegar ao final é, também, um ato de autoelogio.

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