Conta a lenda pernambucana – perdoem-me pela quase infâmia de evocar Pernambuco a essa hora da manhã – que os rios Beberibe e Capibaribe se juntam no Recife para formar o Oceano Atlântico. A grandiloquência da intenção megalomaníaca de exaltação ao que é local tem tradução às coisas de nossa querência.
Mas como baiano não come reggae de pernambucano, nem vai deixar essa ponta de irrealidade exclusiva para eles, é possível dizer que quando Bahia e Vitória se enfrentaram pela primeira vez, lá pelos idos de 1932, refundaram o futebol.
Cada novo jogo carrega o peso de uma história que premia os grandes da vez e que execra os que cometam o pecado maior de falhar. Quantos jogadores não mais que esforçados se tornaram ídolos consagrados ou, a depender do momento, tratados com mais cuidado? Quantos outros não saíram dos vestiários direto para contratos rescindidos a uma passagem de volta?
Num clássico tudo é superlativo. Todo clássico é uma final.
E clássico é atributo de rivalidade, essa dualidade que cresce a partir de proximidade e recorrência.
Sonhamos, quando meninos, com o gol no limite do tempo e das possibilidades, contra justamente o maior rival. Se tanto, emprestamos à Copa do Mundo o palco para a hora mais clara, para a ilusão da santificação.
Impulsionado pelo canto da torcida que eleva o duelo ao altar de glorificação, clássico tem motivação autoalimentada. E, por vezes, a depender do tamanho do salto da soberba, o amor exagerado ao clube na diminuição da importância do rival tem efeito oposto ao intencionado. Se é que a intenção é realmente querer o bem do clube e não, desconfio, se inscrever num inexistente concurso de maior torcedor, o mais-mais da afinidade clubista.
Não que a gastação e a resenha não tenham papel fundamental para criar o ambiente de expectativa típico da monta do jogo. À galhofa eu me junto e me esbaldo. Mas quando se dá um passo além, rumo ao encolhimento do outro, um precipício se forma, e a queda é inevitável.
A estes, que se alinham a pregar torcida única como alternativa viável ou a chamar o oponente de ex-rival, melhor não se meter e deixar no silêncio a repercussão da estupidez. Para isso, contemos a resolução natural do cala-boca pelos fatos. Basta, pois, o remédio amargo de um petardo de Carleto a desmontar o castelo de cartas de verdades escondidas. Basta uma bateria de defesas de Ronaldo para repelir a espiral de invisibilização.
Porque em clássico, por mais que as distâncias pra fora sejam quilométricas, elas se reduzem a quase nada. Não há momento melhor para a virada, para a redenção.
Ex-rival é que nem ex-gay, ex-morto e ex-anão em cartaz na igreja sem escrúpulos: é uma mentira contada que apela ao desespero para atrair os mais fracos de espírito e de cabeça. Mesmo que a lorota seja auto-infligida.
Só existe um Bahia grande com um Vitória grande e vice-versa. E uma instituição tão grande e consolidada quanto o Ba-Vi resiste a despautérios eventuais por meio de histórias improváveis, sorrindo a quem o diminui. Diz o clássico: me respeite, que eu inventei o futebol.
Gabriel Galo é escritor.
Foto: Antenor Pereira / Correio
Artigo publicado na página 2 e no site do Correio da Bahia em 10 de fevereiro de 2020. Link AQUI.
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