Apesar da profusão de crimes comuns e de responsabilidade cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro, faltam 2 elementos primordiais para um impeachment: pressão popular e garantia de votos. Mas ele nunca esteve tão próximo.
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O exemplo de Temer
No dia 17 de maio de 2017, uma notícia varreu o Brasil de maneira devastadora. Joesley Batista, empresário dono da JBS, que havia recentemente assinado acordo de delação premiada, implicou Michel Temer em seus esquemas de corrupção, em áudio vazado às 19h30 daquela noite. No dia seguinte, a Bolsa de Valores viveu um de seus dias mais alucinantes desde a crise do subprime, registrando queda de 8,8%, com direito a circuit breaker e vendo o dólar disparar 8,15%, alcançando a marca de R$ 3,389.
As semanas seguintes foram de extenso desgaste da imagem de Temer. Pelo menos 8 novos pedidos de impeachment foram registrados na Câmara dos Deputados. Rodrigo Maia, presidente da Câmara desde que assumiu em caráter definito o restante do mandato de Eduardo Cunha, cassado e preso em 2016, nada fez.
Maia tinha motivo para engavetar os pedidos, que vai muito além da questão econômica de colocar o país em mais um longo e desgastante processo de impeachment, uma vez que a queda de Dilma Rousseff era tão recente. Era motivo de linha mais pragmática: não havia condição política para efetivar algo daquele porte.
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Como se faz um impeachment
Cabe entender o cenário que leva a um impeachment. Apesar de natureza pretensamente jurídica, depor um presidente é processo exclusivamente político. Chefe do executivo federal cai quando não há como se manter na cadeira. É uma armadilha que depende, resumidamente, de 2 fatores: o controle da base aliada e o barulho da pressão pública.
O controle do Congresso é a questão peculiar do presidencialismo de coalizão, já escancarada com mensalões e afins. Conforme Bolsonaro experimentou na pele, uma base aliada se faz não por ideologia, mas por entendimento de poder. Desta forma, é correto supor que a base aliada, se puder, puxará o tapete de quem estiver na Presidência. Portanto, as negociações de bastidores seguem para atingir uma complicada e fina linha, tênue: o quanto eu devo agradar a minha base aliada, para que ela permaneça no meu governo, mas sem sobrepujá-lo?
Adicionalmente, tem o fator matemático. Para validar um processo de impeachment, é necessário ter garantido o voto de dois terços tanto da Câmara quanto do Senado. São ao menos 342 Deputados e 54 Senadores com o “sim” irrevogável da queda. Sem isso, não faz sentido provocar um desgaste que vai corroer o capital político do presidente da Câmara e líderes de apoio à base.
Além disso, o Congresso, no que se refere à questão de afastamento presidencial, e aparentemente conflitante com tudo o que historicamente representa, é positivista. Somente embarca quando a pressão da opinião pública que demanda a deposição é tão alta que não pode ser ignorada ou combatida.
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Moro x Bolsonaro
Ontem, dia 24 de maio, pontualmente às 11h, Sergio Moro iniciou coletiva que culminaria com seu pedido de demissão do Ministério da Justiça do Governo Bolsonaro. Principal personagem do antipetismo e maior articulador da operação Lava-Jato, Moro se despediu atirando. Abertamente, acusou Bolsonaro de crimes comuns e de responsabilidade, enquanto, descuidado, também deixou brechas para si.
Às 17h, Bolsonaro retrucou, ao seu jeito. Num discurso errático e desconexo, atacou Moro enquanto listava elementos sem sentido de suas decisões. Em trecho específico, Bolsonaro inclusive admitiu ter cometido crime ao confirmar ter solicitado a Carlos Bolsonaro interferir em provas do caso Marielle, ao mandá-lo à portaria do Vivendas da Barra para obter e gravar o registro de chamadas.
E na troca de hostilidades, enquanto admissões de crimes corriam sem filtro, o Jornal Nacional preparou edição especial que inaugura a abertura do caminho para promover Sergio Moro a herói da nação – ao omitir, por exemplo, a pensão ilegal que havia solicitado -, ao mesmo tempo em que pintava Bolsonaro como mentiroso ao contradizer recorrentemente seus discursos.
Este embarque da Globo vem para preencher uma lacuna fundamental nos trâmites de afastamento do presidente: insuflar a opinião pública a se tornar mais agressiva em sua insatisfação.
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A matriz base aliada x opinião pública de Bolsonaro
Um processo de impeachment precisa, portanto, de um esfarelamento da base aliada, com garantias de embarque na deposição, e de um alto nível da pressão pública. Michel Temer, por exemplo, tinha total controle do Congresso, apesar de impopular. Lula e FHC conseguiram a proeza de controlar o Congresso e ter a simpatia da opinião pública durante seus mandatos. Collor e Dilma caíram quando perderam o Congresso e as ruas saíram em poderosas manifestações contra eles.
E como Bolsonaro se encaixa?
Claramente, Bolsonaro não tem base aliada. Até mesmo o PSL, partido pelo qual se elegeu, protocolou pedido de impeachment, por intermédio da ex-aliada Joice Hasselmann. Por isso está tentando atrair o Centrão com promessas, cargos e verbas, lutando para construir os 172 não votantes da Câmara que derrubaria o processo em sua origem. De maneira reta, qualquer projeto de impeachment depende dessa negociação ser bem sucedida ou não. Caso o Centrão embarque, dificilmente vinga a queda do presidente.
A ausência de unidade da base aliada é contrastada por uma relativa impassividade da oposição. Apesar dos panelaços, a pressão pública é baixa. Principalmente porque o lado que apoia Bolsonaro, além de barulhento, é violento. Comparativamente, não se pode afirmar com clareza que há clamor popular pela sua queda, mesmo que haja profusão de crimes e ameaças escancaradas à democracia por parte do Governo e seus asseclas. Além disso, o fato de estarmos em isolamento por conta da pandemia de Covid-19 dificulta a aglomeração que manda imagens soberanas da vontade da população.
É nesse impasse que o Congresso se encontra. E por isso a entrada da Globo, maior manipuladora da opinião pública nacional, tem ainda mais poder. Ver a emissora arregaçar as mangas e partir para o confronto pode gerar o burburinho necessário para que Rodrigo Maia, finalmente, aceite um pedido de impeachment, se a matemática interna assim permitir. Enquanto isso, Brasília se omite, esperando que parta do STF uma posição mais enfática contra os desmandos de Bolsonaro e sua gente.
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Impeachment ainda não, mas em breve
Bolsonaro já cometeu e confessou diversos crimes neste quase 16 meses de governo. Justificativas jurídicas para seu afastamento sobram aos montes. Mas elas não são suficientes, sequer são premissas para balizar um impeachment. Quando a queda de um presidente é inevitável, inventa-se uma tecnicidade jurídica qualquer, como a Elba de Collor ou as pedaladas fiscais de Dilma (aliás, repetidas por Bolsonaro em 2019).
Pragmaticamente falando, no entanto, a queda de Bolsonaro ainda está longe de acontecer. Internamente, não há certeza dos 342 votos na Câmara e dos 54 votos no Senado. Externamente, a pressão pública precisa de mais barulho.
Ademais, a conversa sobre impeachment se torna séria e forte quando há recorrência da cobrança. Mesmo num cenário de baixa probabilidade de concretização do afastamento presidencial, como é o caso até agora, pautar a queda é construção da necessidade, é fortalecimento do ideal.
Só que os desdobramentos recentes indicam que, enfim, começou a movimentação para efetivar a dissolução de um governo que flerta com autoritarismo e é, em si, uma ameaça à democracia.
A saída de Moro representa o desembarque do lavajatismo, pilar de sustentação do governo, se unindo do lado de fora ao liberalismo que já deu adeus há um tempo. De fato, sobram nas trincheiras bolsonaristas parte das Forças Armadas, o olavismo e o reacionarismo evangélico, apontando radicalizações crescentes no discurso quem se vê a cada dia mais isolado e acuado.
Adicionalmente, pesquisas que devem sair esta semana tendem a mostrar a corrosão do apoio e aprovação do presidente. A questão é o quanto essa queda representará, se será grande o suficiente para romper a barreira da desconfiança do Congresso.
Assim, aos poucos, o duelo de narrativas vai dando vez à crueza dos fatos, na medida em que vai se ligando a família toda e correligionários a crimes comprovados. Num cenário de provas irrefutáveis, defender as boas intenções dos locatários do poder se torna exercício com retórica sem sustentação, um castelo de cartas prestes a desmoronar. Ciente do cerco que se fecha, e dada a impulsividade paranoico-narcisista de Bolsonaro, sabemos que ele continuará a gerar provas contra si.
Ainda falta, no entanto, a gota d’água, o evento que sacramenta a queda. Como foram o irmão Pedro para Collor e a nomeação de Lula para Dilma.
Talvez seja, numa colossal ironia do destino, uma acusação enfática e comprobatória de Sergio Moro, antigo fiador da extrema-direita tacanha, o motor que vai fornecer o argumento definitivo para, finalmente, moverem-se as peças em conjunto para corroborar a derrocada de uma presidência esquecível.
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