Dentre os privilégios que me obrigo a admitir que tive, está o fato de eu ter convivido com meus 4 avós. Independentemente de proximidade ou não – meu avô paterno, por exemplo, apesar de muito próximo num ano específico, 1996, pouco fez parte de todo o resto – sobram histórias e aprendizados.
Morei quando criança na casa de 3 desses avós. Na virada dos anos 1990, quando mais um empreendimento empresarial de agora-vai de meu pai tinha se tornado não-foi-dessa-vez, mudamos para a casa de chão de cimento batido e brita aparente da casa de meus avós maternos no Buraco da Jia, nos pés da ladeira do Acupe de Brotas, os Alpes soteropolitanos.
Em 1996, quando a bancarrota dessa vez mandara meus pais para recomeçar a vida no Mato Grosso do Sul, ficamos morando os filhos na casa de minha avó materna.
Foi nestes 9 meses entre a despedida ao Centro-Oeste e o reencontro que meu avô esteve próximo, ao seu jeito, ao seu modo, mas ali. Alguém tinha de nos buscar na escola, e lá ia ele, todo dia.
As convivências geraram memórias primorosas, momentos inesquecíveis, bons e ruins. A casa do Santo Antônio, narrada em crônica nessa edição, virou santuário, um portal rumo ao passado, despejando sons que marcaram a trilha sonora da minha vida.
Todos, invariavelmente, deixaram suas marcas.
Com minha avó materna, Dona Maria da Glória, aprendi a proteção incondicional – por vezes excessiva, diga-se, que a gente molda com a maturidade, deixando somente as coisas boas.
De meu avô paterno herdei, Leonan, além da tradição rubro-negra iniciada por ele, o humor ácido, que procuro sempre segurar para não passar do ponto.
Com minha avó materna, Dona Célica, aprendi que dengo não tem prazo de validade nem hora ruim de pedir.
Com meu avô materno, Seu Perez, aprendi que, mesmo nos momentos de maiores de dificuldades, mesmo que estes momentos durem períodos que parecem eternos, é possível se atravessar o caminho com um sorriso no rosto.
Hoje, as relações estão distantes, no espaço e no ser.
Meus avôs se despediram, em 2008 e em 2020.
Minhas avós, uma já não lembra, o que torna as ligações telefônicas comicamente repetitivas, mas é sempre bom ouvi-la com saúde; a outra sofre na escuridão da cegueira e da quase-surdez.
Escolhi, no entanto, que não são essas as lembranças que jamais terei deles.
Prefiro a altivez elegante de meu avô Perez, andando a passos firmes, estampando alegria, careca lustrosa, peito aberto de pano e coberto de pelos; prefiro o toque carinhoso da pele fina e com cheiro de alfazema de minha avó Célica; prefiro as pegadinhas de minha avó Maria; prefiro as histórias incríveis da vida de meu avô Leonan.
Nesta edição especial de Dia dos Avós, eu conto algumas histórias que vivi ou que ouvi com eles.
É, pois, não uma generalização de qualquer-avô-inclusive-o-seu, mas um recorte pequeno do que representam. Não são totalidade: são parte, mas que bem podem ser parte também do que você, que me lê, experimentou na sua vida com seus avós.
Durante a vida toda, chamei-os, e ainda os chamo, de Voinho e Voinha. A Bahia não larga da gente, não importa onde estejamos.
Neste domingo, falei com minha avó. Duas vezes. Em ambas, contei com o mesmo entusiasmo, com a mesma atenção, quantos filhos eu tenho, que estou no segundo casamento, que moro em São Paulo, para ela dizer orgulhosa que teve 5 filhos, brincar, sarcástica, que minha esposa não merecia o sacrifício de conviver comigo e que adora São Paulo, onde viveu por alguns anos nos anos 1960.
E eu seguia empolgado com sua voz, mesmo sabendo que poucos minutos depois do primeiro alô ela já sequer saberia com quem falava, eu lançando “voinhas” na esperança vã de fazer a memória recente ainda vívida, pelo menos na duração da nossa cíclica e repetitiva conversa.
Mas não importa. Agarro-me no que ainda resta de possiblidade de convívio enquanto zelo pelas lembranças. Não posso me conceder o infortúnio de negar respostas e carinho a quem tanto zelou por mim, à sua maneira.
Tive muita sorte de tê-los próximos, lúcidos e fortes durante muito tempo. Isso é privilégio demais. Amo-os todos, onde quer que estejam, nos refúgios de mentes que falham, em corpos que se tornaram prisões, no além-mundo onde matéria é só memória.
Feliz Dia dos Avós a todos.
Editorial publicado pela primeira vez com exclusividade na Papo de Galo_ revista #7, páginas 6-8.
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