O ex-governador de São Paulo, André Franco Montoro (1916-1999) afirmou durante a campanha a governador em 1982:
“Ninguém mora na União; ninguém mora no Estado; todos moram no município.”
Como se percebe, Montoro era um grande defensor do municipalismo, da autonomia das cidades para se organizar politicamente.
Com a promulgação da Constituição de 1988, também chamada de Constituição Cidadã, o Brasil se tornou uma exceção mundial. Foi nela em que os municípios se tornaram entes federativos.
E o que significa, exatamente, se tornar um ente federativo?
Significa organizar-se politica e administrativamente de maneira autônoma, dentro dos limites que lhe cabe. Assim, os municípios tiveram autonomia para legislar, controlar recursos e decidir sobre assuntos diretamente relacionados às especificações locais.
É importante entender o momento político que levou à afirmação da soberania municipal. E tem muito a ver com a Ditadura Militar no Brasil (1964 a 1985).
A Constituição de 1988 veio para proteger uma série de Direitos Civis contra as intempéries das Forças Armadas. Alguns dos instrumentos que hoje protegem políticos corruptos – como a amplitude do foro privilegiado – surgiu para que o novo poder comandado por civis não sofresse perseguições por conta de leis arbitrárias durante o regime autoritário.
Depois de décadas de cerceamento de liberdade e negação de direitos básicos, a Constituição de 1988 veio para reconhecer demandas antigas do Brasil, como a autonomia de povos indígenas e quilombolas, dentre muitas outras. (ver Papo de Galo_ revista #3)
Além disso, Brasília apontava um caminho extremo de distanciamento das necessidades da União com relação às particularidades locais.
Isso ocorre, inclusive, no âmbito Estadual, com as pequenas cidades do interior sofrendo com uma certa invisibilidade perante a capital.
Havia, portanto, uma demanda de protagonismo daqueles às margens dos interesses centrais.
Além disso, a criação de, naquele momento, cerca de 4,5 mil entes federativos autônomos era a senha para a proliferação de feudos políticos, saciando a sede de políticos estabelecidos pela manutenção de sua influência sobre o orçamento público.
Eram, pois, muitos interesses em jogo.
A história da política do Brasil também exerceu grande influência na construção de uma percepção estranha na administração pública: a de que a independência é a única maneira de fazer valer as demandas locais.
Isso porque, além da centralização na capital, as coisas só “andavam” com a interveniência direta do poder central. Ou seja, somente um poder instituído serve como motor do desenvolvimento local.
Mas esta visão tem uma pegadinha que contradiz as boas práticas de gestão pública e indica um sobre gasto que significa irresponsabilidade fiscal indireta.
O que o mundo faz?
Se as cidades não são entes federativos, o que elas são?
Resumidamente, são células de execução da gestão pública.
Para que um município tenha autonomia de gestão pública, ele tem que obedecer a alguns critérios, que normalmente passam por tamanho populacional e capacidade de se manter financeiramente. Caso não atinjam os requisitos, não há eleição: há apontamentos de gestores públicos que cuidarão do orçamento local e outras atribuições.
Ou seja, as cidades não precisam necessariamente de uma estrutura de poder formalizada para operar. São municipalidades reconhecidas, mas sem a burocracia da máquina pública a impor gastos desnecessários.
Adicionalmente, a visibilidade local se dá por meio seja de representação distrital nas instâncias superiores de poder público e por meio de participação ativa da população em conselhos municipais, normalmente não remunerados.
Com o primeiro, se assegura que haverá sempre alguém oriundo da região com voz nas assembleias de maior importância, levando os temas do município à pauta de controle. Com o segundo, constrói-se sentimento de mobilização política.
É este segundo item que mais falta ao Brasil.
Um município para chamar de meu
Com definição de poderes municipais autônomos, a história brasileira de atribuição de feudos de poder a uma casta atinge influência capilarizada. Em vez de poucos detentores de poder, é possível agraciar apoiadores em múltiplas localidades com diretórios municipais e orçamentos públicos, independentemente de déficit fiscal.
A argumentação em que orbitava a defesa dos municípios como entes federativos desobedece, portanto, à realidade apresentada. •A pretendida autonomia dos municípios se deu apenas em cidades maiores; as menores permanecem às margens, mendigando recursos, em especial do Fundo de Participação dos Municípios. •Fez com que arbitrariedades de fronteira dificultasse a integração orgânica de regiões metropolitanas. •Implodiu boas práticas de gestão do orçamento público, capilarizando o controle do dinheiro e dificultando fiscalização. •Fortaleceu feudos de poder – o coroné agora é dono do poder formal, além do paralelo. •Sedimentou a percepção popular que somente o poder instituído funciona, quando, na verdade, isso não é necessariamente verdade – o mundo está aí para provar que há maneiras diferentes.
O Brasil é, portanto, exceção mundial ao atribuir municípios como entes federativos. E isso é sinal não de que o Brasil não é necessariamente o poder político em si, mas as estruturas de poder que precisam ser revistas e reconstruídas. Perdemos sempre oportunidades históricas de transformar o governo em algo mais avançado.
O embrião desta reversão da condução política nacional é a participação popular efetiva. É dela que nasce qualquer avanço civilizatório. Aliás, a ausência de participação ampla e divergente é o caminho ideal da propagação de ideologias com viés impositivo e restritivo, vide a ofensa de certos grupos nos conselhos tutelares. Chamar um município de seu passa, obrigatoriamente, pelo entendimento de que é fundamental atuar politicamente para desenvolvê-lo. E atuar na vida pública não é só ser candidato em eleição.
Pergunte-se: como posso participar da vida pública da minha cidade?
Está na Constituição de 1988:
Art. 30. Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;
IV – criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;
V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;
VI – manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental;
VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;
VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.
Artigo publicado pela primeira vez com exclusividade na Papo de Galo_ revista #9, páginas 11-14.
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