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A desobediência

A desobediência

Renato era um cara complicado de se lidar. Muito. Desde pequeno. Não havia santo, nem jeito que lhe desse jeito. Para os pais, era desesperador.

“Solicitamos aos pais que compareçam com urgência amanhã às 08 horas da manhã na escola para conversarmos sobre o comportamento do seu filho.” Bilhete padrão de toda semana, por exemplo.

Foram tantos e foram muitos os casos, incontáveis. Inferno que se fez de tal forma, que pai e mãe resolveram não ter mais filhos, porque Renato era trabalho suficiente para eles e mais uma geração.

Durante muito tempo conviveu isolado.

Ele nunca ia às festas dos amigos.

Ele nunca era convidado para os aniversários.

Na aula de educação física dizia querer criar o próprio esporte, e vivia sendo expulso das atividades pelos professores e colegas.

“Esse aí não tem jeito. Boa coisa não vai ser.”

Aos trancos e barrancos, dando murros em pontas de facas e quebrando a banca de geral, Renato foi ficando mais velho. Mas não menos desobediente.

Num passeio com a família, quis desafiar um hipnotizador que ali se postava. Nada feito nem efeito, saiu-se rindo do pobre homem, que, envergonhado, recolheu sua faixa e foi atender em outra vizinhança.

Nesta mesma noite fez-se querer ir a um certo festival de música na cidade. Dadas as intempéries do que havia provocado – sempre havia – estava de castigo – sempre estava. Disseram-lhe “não”, o que adiantou de absolutamente nada.

Renato foi, escondido, e no meio da galera levou-se em transe à confluência de corpos e mentes.

“Tira o pé do chão!”, cantavam ao microfone e lá estava ele pulando.

“Batendo palminha assim”, e ele lá seguia clap, clap, clap.

“Quero ver a galera do meu lado direito!”, e ele gritava a plenos pulmões o que quer que lhe fosse ordenado.

“Vai! Vai!”, e ele saía correndo.

Perdido por ser mais um na multidão, ninguém haveria de lhe perceber a falta de indolência quando era ordem cantada. Olhou para os lados, viu que nenhum rosto lhe era familiar. Aliviou-se. Afinal, tinha uma imagem a zelar.

Voltou para casa para encontrar seus pais dormindo o sono dos justos – e dos coitados – sorriu vitorioso e deitou-se.

Acordou no dia seguinte, já perto do meio-dia de domingo, para ver pai e mãe preparando o almoço. Sua vó estava a caminho, a tia com seus adjacentes, numa grande confraternização que sempre lhe embrulhava o estômago. É que era tudo muito chato. A vó que lhe apertava as bochechas e perguntava quando ia casar; era a tia que cochichava com sua mãe perguntando se já o tinha mandado ao psiquiatra; era o primo pentelho a chutar-lhe o saco e ainda sair chorando para ver todos brigando com o alvo principal de rusgas e intrigas.

O clima era de tanta tranquilidade que suspeitou de algo.

Ao vê-lo se aproximar, os pais deram bom dia. Como não ouviram resposta, o pai ecoou como num show:

“Ih… Muito fraquinho! Quero ouvir bem alto! Bom dia, meu filho querido!”

E ele gritou “BOM DIAAAAAAAAAAAA!”

Arregalou os olhos. Que truque era aquele?

Voltou correndo assustado para o quarto, trancou-se.

Os pais vieram ter à sua porta.

Seu pai iniciou um batuque de samba-reggae, fazendo outros instrumentos de percussão com a boca e a mãe começou a cantarolar. No meio dos versos, largou:

“E eu quero ver o quarto arrumado e tomado banho em 15 minutos. Vai! Vai! Vai!”

E se ouvia a movimentação.

Em 15 minutos, conforme dito, de banho tomado e quarto arrumado, chegou à cozinha. Tinha fome, como não?

Tudo seguiu naquele roteiro durante todo o dia.

Sua mãe largou “um beijo aqui, um beijo ali, eu quero ver você beijar! Agora:! 1, 2, 3, 4!”

Ensaiou até abraço, “ora, mas veja”.

O dia, com tudo para ser insólito, correu tranquilo, sem entreveros. Apogeu, Renato lavou a louça!

Na cama, depois do longo dia, os pais se abraçaram:

– Será que a gente exagerou?

– Você viu o dia de hoje, Marta!

– Eu sei, Augusto… Mas ele não faz ideia do que estamos fazendo com ele, tadinho.

– Marta, pela primeira vez em meses teremos uma noite tranquila de sono!

Pausaram um segundo, apreciando o silêncio e o coração que não batia apertado por conta de um bate-boca qualquer.

– A gente se prometeu: assim que ele sair de casa para a faculdade, paramos.

– Não sei, não…

– Agora o que, Augusto?

– O hipnotizador falou que ele só obedeceria ao som da nossa voz. Podemos mantê-lo na linha durante toda sua vida… Ou pelo menos até se formar na faculdade!

– Ai, Augusto, acho exagerado demais… E imagina a saga estranha que não vai ser? A gente no mercado, cantando um axé com refrão de ordem e o menino saindo que nem macaquinho treinado. E outra: precisava do festival?

– A gente tinha que testar, Marta! E se não desse certo?

– É… Não foi pouco dinheiro, não.

– Só que tem um problema nisso aí.

– Ai, meu Deus. O quê?

– A gente começar a gostar de axé.

– Não podia pelo menos ser um rock and roll?

– Não dava. O hipnotizador especializado em rock só chega na semana que vem.

Uma lágrima solitária foi vista no olho de cada um, que continuavam agarrados. Resignaram-se e tentaram até sorrir.

Todo esforço era válido.

– O que tem que ser, axé será. – cantou ele.

– O que foi isso? Isso foi um trocadilho, Augusto?

– Essa é do Araketu, né?

– Estamos fritos.

E dormiram como há 17 anos não dormiam.

***

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