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A droga da abstinência

A droga da abstinência

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Arrumando os espaços para uma mudança de casa que se avizinha, encontrei um saco acabrunhado, meio amassado no fundo da gaveta.

Abri curioso, tentando puxar pela memória o que era. E ao fazê-lo, pulou sobre mim, tal qual a caixa do palhaço que solta a cobra num susto alegre, as lembranças de carnaval passado.

Em meio ao conjunto completo das roupas da inversão, no que seria uma afronta às Lumenas da vida – descansa, patrulheiro –, jaziam pontos luminosos, como um universo particular, um mundo paralelo escondido numa sacola no fundo da gaveta.

Porque, na rua, no meio da multidão, com o trio explodindo tímpanos e desinibindo até a mais beata das pessoas, fantasiado leitor, saudosa leitora, tudo é divino, tudo é maravilhoso. E a gente cai na farra como se não houvesse amanhã, mas a sina da quarta-feira deveria rebatizá-la pelo nome correto: quarta-feira de glitter.

O retorno do Carnaval que teve fim inicia uma saga impossível, de uma lembrança que nos pega por debaixo da pele: nos livrarmos dos resquícios de purpurina.

É que o glitter, embora nunca centro de propaganda patriótico-ufanista, é brasileiro e não desiste nunca.

Lavamos o rosto uma, duas, mil vezes. Nada. Ele ali, irredutível. Passamos sabão, esfoliamos, raspamos com a unha. Qual o quê: dali ele não sai, dali ninguém o tira. Rosto é só o primeiro passo: tem o resto inteiro ainda.

O processo é árduo, pois estamos diante de um inimigo mais forte que a gente. Sabemos que talvez nunca sejamos capazes de vencê-lo, e ele vai permanecer, como a nos rememorar do Carnaval que falta um ano mais.

Intercalamos risos e xingamentos, porque a batalha é tanto patética quanto ridícula.

Foi só muito tempo depois, quando o Carnaval já era uma vaga lembrança, que os últimos heróis da resistência se despediram de meu alongado corpo, mesmo alguns ainda tenham se escondido em pelos que, se vira-dos para lá em vez de pra cá, se tornavam marquises para o indesejado.

Até eu descobrir que, na verdade, eles não foram vencidos, mas sim se amotinaram na danada da sacola sem identificação, com roupa de fazer corar os fiscais do Catraca Livre, aqueles com a carteirinha de autorização para uso de fantasia, habilitados pelo vídeo do pode-não-pode – essa aberração importada de americanos, que se baseiam no famigerado e historicamente violento, silenciador e racista black face, mas que compramos por cá sem nos preocuparmos com a tropicalização da essência, e assim multiplicam absurdos que são tiros no pé da militância.

Havia um universo ali de pontos coloridos, que esperavam apenas pela claridade mínima para brilhar, atores de um Carnaval que parece há tempo demais.

Lançaram em conjunto as memórias, e uma voz sussurrou no meu ouvido: decifra-me ou te devoro.

Sem desejar ser abduzido para dentro da sacola – sabe como é, tenho uma mudança para fazer e não seria correto deixar tudo para minha mulher organizar – fitei o interior, em que os brilhantes sassaricavam ao som de marchinha qualquer.

Tremendo a tremedeira da abstinência, sem pensar, enfiei o focinho e traguei lânguido as sensações que ali insistem em acampar. Revivi os dias de antanho com saudade.

Agora, vez ou outra, no feriado de um Carnaval inexistente, retorno à sacola que se não me devorou, me domina.

Danado esse glitter. Aprendi a lição: o que é imortal não morre no final.


Crônica para a Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021, páginas 18 e 19.


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Capa da Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021.

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