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A nossa vida dos outros

A nossa vida dos outros

Sentou-se à mesa do café na esquina movimentada do Centro um jovem casal. Alheios a si, migraram seus afazeres quase instantaneamente para a tela de seus celulares, espalhando afeto e opinião meramente virtuais. Não se falavam, pouco se olhavam, de relance, aqui e ali.

Pedem um espresso para ele, um cappuccino para ela, croissants para acompanhar. O garçom leva os pedidos rapidamente. É saudado friamente com um “obrigado” quase inaudível, como se proibido. O rapaz deixa o celular de lado, enquanto ela procura a melhor luz para postar a foto que julga importante.

A grande porta de madeira maciça se abre para que outro casal, igualmente jovem, surja com algum alvoroço. Estão de braços dados. Sorriem com folga. Cumprimentam o garçom, que os devolve um sorriso mais do que cordial. Ele aponta a uma mesa, dando passagem com o braço esticado. Ambos se acomodam, pedem algo sem ver no cardápio. O garçom acena entendimento com a cabeça e dá-lhes as costas, para que ambos, de rostinho colado, comentem de algo, intercalando palavras, sons, beijinhos e afagos.

O casal de antes se olha intrigado. Pela primeira vez desde que entraram, firmam o olhar.

Ele comenta:

– Você viu aquele casal ali? Eles parecem felizes demais, não acha?

– Sem dúvida. Coisa boa é que isso não há de ser.

– Ah, não mesmo. Ou é amor recente, no auge da paixão, ou então alguém tem muita culpa no cartório.

– Além do que, essa cena toda, assim, no meio de todo mundo? Pra quê? Para constranger os que estão aqui apenas querendo tomar um café em paz?

– Não é normal nem saudável ficar sorrindo o tempo todo. Li até em algum lugar que pode puxar um músculo e a pessoa ficar deformada pra sempre!

– Deus me livre!

–  Pois é.

– Agora, veja, eu aqui precisando mandar um Stories no Instagram, mas estou sem cabeça para isso.

– Inacreditável. Enquanto a gente fica aqui, sem atrapalhar ninguém, fazendo o nosso e pronto, concentrando no que importa, tem gente que quer mesmo é avacalhar.

– Bem se vê que não é gente confiável. Olha lá! Um beijo! Onde eles acham que estão? Na sala da casa deles?

– Uma pouca vergonha!

– Quer saber? Pede a conta. Vamos embora. E vou é fazer um vídeo indignado para colocar nas minhas redes sociais aqui mesmo na frente desta espelunca.

Ele, então, pede a conta com cara franzida. Paga secamente, sem dar abertura ao prestativo garçom, que em vão lhes diz “Voltem sempre.” Ambos se dirigem para fora. Não conseguem evitar voltarem um olhar de fuzilamento para o amoroso casal, que parece alheio a tudo que vem de fora.

Na frente do café, ele busca o celular enquanto ela grava o seu vídeo. Gesticula movimentos de indignação. Enfim, dá-se por satisfeita. Depois somem, distantes e sem intimidade, de volta para a vida que estão certos ser a única possível de ser vivida.

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