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Acarajé na terra do sobá

Acarajé na terra do sobá

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Essa semana eu fiz sobá aqui em casa, depois de uma incursão a uma sobaria na Vila Mariana, aqui em São Paulo. Do sobá comprado digo que estava mais ou menos, com pouco gosto de história. Talvez construamos nosso paladar afetivo, elevando categorias do que de nossas raízes à ambrosia. No que o mais ou menos se finca como o máximo possível. Ou talvez tenha sido mais ou menos mesmo, e esta introdução toda perde parte do sentido, embora ainda seja fato – uma coisa não necessariamente exclui a outra.

CAMPO GRANDE

O sobá é prato de origem japonesa, de Okinawa. Tive contato pela primeira vez com a iguaria oriental quando nos mudamos de Salvador a Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, para recomeçar a vida – no caso dos meus pais – e para continuar a vida ainda incipiente – no caso dos filhos, afinal, que sabíamos nós da vida para dizer que recomeçávamos?

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Hannah I.

Vivíamos como dava. Sequer lembro com o que trabalhavam meus pais na labuta do Centro-Oeste, mas era duro, embora a casa com piscina – possível graças à fração do custo de vida que representava a cidade perante Salvador – ajudasse. Nos fundos tinha uma edícula com churrasqueira. Se alguém ali soubesse fazer churrasco, diria ter sido algo excelente, potencial havia. Foi lá que surgiu a Hannah primeira, rottweiler que deveria ser a segurança da casa, mas que abanava a bunda para todo mundo, inclusive para certos gatunos que afanaram o pouco que havia dentro de casa antes mesmo de termos, os filhos, pousado por aquelas bandas.

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No 2 de Julho, esperando embarque de Salvador a Campo Grande.

Na nossa mente de criança absorta e um tanto besta, perdida nos alfarrábios da incompreensão do mundo, havia de ser festa. Andaríamos pela primeira vez de avião, ora, como não? Minha avó, com quem morávamos na casa do Santo Antônio, preparou-nos à ocasião. Fui de calça jeans e camisa quadriculada revestindo um esqueleto magro e um rosto que ostentava um ralo bigode adolescente, vergonha registrada em fotografia. Pendurada no bolso da camisa, solitária, uma caneta, para quê, mesmo? A completar o figurino, meu violão, dado por minha avó depois que meus dedilhados começaram a ganhar ritmo. Imaginava ela que nevava em Campo Grande em pleno dezembro de 1996, auge do verão. Só assim para justificar o pesado agasalho verde nunca mais utilizado.

Éramos, por fim, migrantes nordestinos em busca de uma vida melhor – embora esteja claro que as semelhanças com as histórias relatadas em sua maioria acabem aqui.

A FEIRA E O SOBÁ

Se não me falhe a memória – ah!, como tem falhado. Estes dias estive procurando lembrar de uma palavra, como era mesmo? Esqueci. – a feira tomava as ruas de quarta e de sábado, do fim da tarde à alta noite. Nestes dias a cidade toda se reunia em seu principal ponto de encontro e atração. Feira do jeito tradicional, para comprar frutas, legumes e, principalmente, comer sobá. Uma lateral, do lado direito de quem subia, era quase inteira composta pelas barracas dos descendentes de japoneses, que serviam o prato em cumbucas de comer deliciado. A feira subia e se desdobrava num T em sua parte de cima.

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Feira do lado de cá, sobá do lado de lá.

Não eram frequentes nossas idas. Passeio era reservado para dia de pagamento, e olhe lá. Coisa de quase todo mundo: comer fora é luxo, ainda mais para família com três crianças famintas. Era raro e era lindo. Eu sonhava com o sobá. Sobá era o ápice da realização material.

A conexão Bahia-Mato Grosso, reservada a consumidor e morador novo a provedor de casa e comida, estava prestes a ganhar um novo fascículo. Seríamos nós, por que não?, provedores também de comida típica. E quer comida mais baiana que o acarajé?

CUMA?

Você vai perguntar, insistir, espernear, e, sereno, que não sou (mais) de estouros de “me deixe”, dir-lhes-ei (uma mesóclise para alegrar o dia) renitente: e eu sei lá como diacho esta configuração de vender acarajé no Centro-Oeste foi decidida, criatura? O que eu sei é do depois, inclusão era só na hora de pegar no batente. Do antes, apenas posso dizer que: em Campo Grande, na época, sequer tinha McDonald’s, imagine acarajé; Mainha nunca tinha feito nem tentado, no máximo um vatapá importado de Tia Lourdes; em nada parecíamos baianos, brancos, gordos e, no meu caso, alto toda vida.

“Vamos vender acarajé na feira.” Anunciaram assim, na lata. Para nós, era o grande momento de reconectar com a Bahia, com o acarajé que se esvaia em saudade. E criança, besta que é, achou que seria legal demais. Maturidade é enxergar consequência, e só entendíamos o “vai ter a acarajé”, sem ter noção do trabalho da ZORRA que é.

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O acarajé de Mainha, a Tetê da Bahia, na feira de Campo Grande, capital do MS.

ERROS E ACERTOS

Foram vários os testes de receita. Importávamos tudo da Bahia, que chegava nalguma conexão que meu pai deve ter arranjado por aí. Vinha feijão fradinho, vinha dendê, vinha camarão. Na base do bota mais disso e tira mais daquilo, voilá!, opaí!, É A PORRA!, fez-se o acarajé dos deuses (desculpe a redundância).

O diabo era a preparação.

Bota o feijão fradinho de molho. Fica lá, inchando, crescendo… Escorre a água (um cheiro que contrasta com o resultado final) e deixa secar um pouco para passar no moinho. A gente demorou para achar o ponto do tempo – especialmente porque estávamos sempre atrasados – da secagem do feijão. Botava no moinho manual, haja braço!, ajustava a pressão para sair na finura certa, e o bicho empapava dentro da engrenagem. E a gente morrendo de pressa, e o couro comendo, e meu pai olhando, e minha mãe no vatapá, e eu me virando para que o moinho voltasse a moer – afinal, era pra isso que ele existia. Alegria da vida, salvação do mundo!, foi quando apareceu por lá, aleluia!, ajayô, meu senhor do Bonfim!, um moinho elétrico.

Invariavelmente chegávamos atrasados, o que significava não poder parar com o carro na frente do nosso espaço na feira. Baixávamos panelas, tachos, alimentos, tudo na mão em seguidas viagens. Quando a noite começava e os visitantes se achegavam, já éramos pó.

Havia ainda o trabalho de montar a barraca. Eram 6 hastes de ferro fincadas em buracos pré-fabricados na calçada, três estruturas em arco de frente a fundo com diversas barras cruzando de comprido e uma lona com corda para amarrarmos. Era quase um doutorado em engenharia civil montar. As hastes se dobravam, cada uma cabia num buraco diferente, tinha desnível, na hora de cruzar as barras não encaixava um horror. Pior mesmo era quando chovia. Eu, o mais alto, ficava responsável pela montagem da lona, e lá me metia, debaixo de chuva, a montar nosso cafofo. Por causa da água desistimos das mantas que estendíamos por trás como enfeite. Molhava, embolorava, pesava, fedia… Era, portanto, eu pongado, e a chuva caindo, e eu me encharcando, e meu pai olhando, e meus irmãos esperando, e eu querendo voltar pra casa odiando aquilo tudo.

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Barraca montada, mesas a postos. Foto com o cuidado de ser tirada quando tinha gente, fazendo de conta que vendíamos que era uma beleza.

Reclamamos, “assim não dá!” No que meu pai, que tinha alergia visceral a trabalhos braçais, logo arrumou jeito: contratou alguém para montar a barraca, cujas ferragens ficavam num terreno baldio exatamente atrás do nosso ponto, e sei lá como nunca levaram. Chegávamos e lá ela estava. Saíamos e haveria alguém de desmontá-la.

Tivemos contato com conceitos importantes sobre negócios – meu pai, mesmo tendo tido vários empreendimentos anteriores, mostrava grande grau de resiliência e perseverança ao se recusar a reconhecer erros e aprender. O primeiro conceito a ter dado na nossa cara foi preço. Como é que bota preço num negócio que ninguém NUNCA comeu na cidade? Definiu-se, depois de testes estatisticamente rígidos, o cardápio e os valores: acarajé era R$ 1,50 e a dobradinha era R$ 3,50. (Como era bom o tempo de comer acarajé a um e cinquenta!)

Segundo conceito: projeção de demanda. Ah, como a gente errava. E era um tal de chamar um moto-táxi (mototáque, como diziam então) e ir correndo pra casa para buscar mais massa, mais vatapá, mais camarão. Vez ou outra, meu pai se prontificava a ir, e demorava uns três dias para voltar.

O terceiro e principal conceito aprendido acabou por ser o lema do varejo: location, location, location. No “T” da feira, estávamos dobrando a esquina, longe do rebu onde a gente se refestelava nos sobás dos japoneses de Okinawa. Poucos chegavam até o nosso ponto. Os poucos que chegavam, tinham ainda que se habituar com aquele negócio meio estranho vindo da Bahia. O funil de vendas era apertado.

CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM

“Para vender o tal do acarajé tem que ser baiano.”

Essa máxima foi assimilada em trajes que, assim entenderam meus pais, eram típicos. Mainha, branca como a neve, vestia uma saia branca rodada, uma brusinha (com “r” mesmo) branca e turbante na cabeça. Meu pai e os filhos vestíamos calça branca, camiseta branca do Olodum, tínhamos até faixa, Tetê da Bahia – tá pensando o quê, xará? – e um chapeuzinho de pano colorido na cabeça. No rádio que tocava CD, reproduzia-se música baiana de alguma espécia.

Hoje, em retrospectiva, hei de convir: éramos uma estufa de reprodução de clichês e de esterótipos da pior espécie.

Aos poucos fomos abandonando o uniforme. As calças viraram jeans ou bermudas, ou o que desse na telha. As camisetas, das comuns. A única, tadinha, que não podia se livrar da maldição era Mainha, que cuidava do tabuleiro vestida e paramentada.

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Meu pai e aquilo que acreditávamos que dava para passar como baiano.
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Mainha, ou melhor, Tetê da Bahia e o tabuleiro da baiana.
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Minha irmã no personagem dos baianos vendedores de acarajé em Campo Grande.
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Mainha na indumentárias, comendo do próprio produto.

ACABOU

Aquilo não devia dar dinheiro. Apesar de ser novo, era questão de matemática: a conta não fechava. Ou melhor: fechava, mas no vermelho. Era coisa de tempo contado, feito para acabar.

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Meu pai durante a Feira das Nações, em Campo Grande, quando representamos Salvador vendendo acarajé. Uma das tentativas de ganhar dinheiro na Cidade Morena.

Não foi senão com um certo alívio que soubemos que não teria mais acarajé na terra do sobá. A bem da verdade, foi como perguntar que horas eram. “A gente não vai arrumar as coisas pro acarajé de sábado?” devo ter perguntado na quinta. “A gente não vai mais vender acarajé.” Assim, sem cerimônia, cada um com seus afazeres.

Acabariam os sobás oferecidos pelos barraqueiros vizinho, retribuídos com um acarajé aqui e outro ali. Viveria meu pai mais uma desilusão empresarial – embora seja coisa meio de maluco crer no sucesso de empreendimento naquele momento. Fosse hoje, quem sabe? Mainha respirou cansada, tirou um grande peso dos ombros. No que dava para salvar, manteve a receita que hoje incorporei para mim. O moinho mudou-se para o Tocantins, onde tio achava que lá, sim, acarajé daria certo (se não deu no Mato Grosso, imagine no Tocantins?) Ainda aqui em casa se encontram uns tachos, um moinho manual novo, a peneira de secar feijão, a panela do vatapá e umas fotos de um tempo que não volta mais.

Tudo isso por causa de um sobá mais ou menos na Vila Mariana, que resolvi reconstruir em casa, e, de tão fantástico que ficou, me embarcou numa viagem pela memória.

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O sobá feito em casa, máquina do tempo, voo direto e sem escalas, até 1996.

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