Tenho poucas lembranças da infância. Não lembro de passagens por anos a fio, apenas flashes aqui e ali, soltos. Um local, no entanto, se faz presente em várias instâncias, junto com a escola: a arquibancada de um estádio de futebol.
Minha primeira memória nele se encontra, ou ao menos ensinei-me que assim era – e vai lá saber da veracidade do registro. Assim, atesto que verdade é se assim ela parece.
Se o Maracanazo de 1950 criou o mito de que todos estavam presentes ao estádio naquele dia, evento semelhante ocorreu em Salvador no dia 12 de fevereiro de 1989. Nesta data, Bahia e Fluminense jogavam pela Copa União de 1988, na campanha do título do tricolor baiano. E, fez-se o registro em minha mente: eu estava lá.
Na época era comum que torcedores de um time fossem com amigos a um jogo do rival, pela festa, pelo acontecimento. Então, em 1988, meu pai, Vitória convicto, topou ir com amigos para ser testemunha ocular da arrancada final do Bahia. Amigos esses que retribuíram a gentileza em 1993, nos acompanhando no Brasileiro daquele ano, bem como em muitos outros anos mais. Lembro-me (lembro mesmo?) de estar espremido com meu pai no mesmo degrau de bancada ali onde a torcida mista fez morada nos idos de civilidade futebolística.
Segundo o sociólogo brasileiro Gabriel Cohn, “Sociólogo no Brasil que não tiver os fundilhos das calças puídas pelas arquibancadas não entenderá este país.”
Dou vez ao xará para dizer que minha relação com meu pai pode ser redefinida pelo cimento da arquibancada.
A minha infância de relação complicada era sempre deixada de lado num estádio de futebol. Forjamos nos degraus dos templos do futebol algumas de nossas melhores histórias.
Vimos juntos em 1993 as semifinais e a final do Brasileirão.
Vimos Raudinei e sua crueldade medíocre destruir o título que estava ganho.
Subimos os barrancos enlameados do entorno do Barradão quando, muito antes das obras de agora, testemunhávamos os postes queimando o gás tóxico do ex-lixão redirecionado.
Perambulamos por Pituaçu, quando lá se marcava o baba.
Desacreditamos do que nossos olhos apontavam, o 7 a 2 sobre o Palmeiras, pela Copa do Brasil de 2003.
Morenão, em Campo Grande.
Parque Antárctica.
Pacaembu.
Morumbi.
Nova Fonte.
Muitos, muitos jogos no Barradão.
Ali ressignificávamos a história, como se começássemos do zero a contagem, perdoando o que quer que fosse, abrindo espaço para novos roteiros.
O cimento duro da arquibancada moldou caráter, moldou modo de ver a vida. A plateia do espetáculo do futebol se tornou, para mim, espaço de compreensão, aceitação e entendimento.
O valor do esporte não está nas cifras, nem nos esquemas, nem nada dessas miudezas que esterilizam o palco para que só se tenha vez o dispêndio financeiro e a lobotomia do jeito de torcer. Importa a paixão, as relações humanas, aquilo que faz de cada interação especial e significativa.
Tomamos a chuva bíblica de 2009 na final do campeonato baiano, e de lá vimos também a de 2010, no repeteco pro tetra.
Em 2013, último ano de felicidade boleira rubro-negra e brasileira, o que é exatamente a mesma coisa, assistimos das cadeiras estéreis da Nova Fonte o Brasil sapecar 4 a 2 na Itália pela Copa das Confederações.
Nas arquibancadas de um estádio de futebol éramos felizes e sabíamos, independente-mente do placar.
No dia 26 de março de 2016, um novo ciclo de torcedor se fazia. O 3 a 0 sobre o Flamengo de Guanambi são absolutamente irrelevantes. Era dia de outra festa, mais significativa.
Fomos eu, ele, minha esposa, um amigo torcedor do Bahia, que topou o passeio com a filhota para ver meu filho, Alexandre, ser iniciado nas arquibancadas do santuário rubro-negro, no dia da estreia de Kieza.
Subindo e descendo as arquibancadas com o vigor característico de uma criança de quase 5 anos e pedindo insistentemente para entrar em campo, meu filho se esbaldou e se declarou Vitória para sempre.
Este jogo foi o último de meu pai no Barradão. Despediu-se de sua casa, como ano antes, comigo também, se despedira da Chapada Diamantina. Cinco meses depois daria seu último suspiro.
Ali se deu nossa despedida presencial, enquanto lúcido. Nela, uma vez mais ressignificamos nossa história, com a conversão irremediável do neto à sina rubro-negra.
Talvez fosse ali o ponto final de um trabalho finalizado, de formação completa.
É lindamente simbólico que o adeus em presença tenha ocorrido na bancada do estádio que aprendemos a amar, que também se ajustou e evoluiu, elevado a muito mais do que o espaço original poderia sugerir.
Pra sempre teremos o cimento duro da arquibancada a puir os fundilhos das nossas calças, o sorvete de cajá, o amendoim cozido, os cânticos, o foguetório, seus trejeitos estranhos de torcedor, tudo ornando para dar ponto final às atribulações prévias, compreender a barca e ir tocando em frente.
Foi lindo demais. E está sendo cada vez que vou com meu filho a um estádio de futebol, para que ele aprenda que ali é território sagrado de aperfeiçoamento do bem-conviver.
Crônica publicada pela primeira vez com exclusividade na Papo de Galo_ revista #8, páginas 29-31.
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