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Batalha narrativa e a vacinação no Brasil

Batalha narrativa e a vacinação no Brasil

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O domingo, 17 de janeiro de 2021, amanheceu com um misto de expectativa e apreensão. No começo da tarde, em reunião extraordinária transmitida ao vivo, o corpo diretivo da Anvisa, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, daria o seu parecer sobre os pedidos de aprovação emergencial das vacinas do Butantan/Sinovac e da Fiocruz/Oxford/AstraZeneca.

Pairava no ar o receio de que a Anvisa, ordenada pelo presidente da república, vetasse a vacina do Instituto Butantan em nome da rixa com o governador de São Paulo. Conforme exposto reiteradamente pelo presidente em lives e em declarações públicas, o governo não compraria nem incentivaria a vacina que chama, em tom pejorativo, de chinesa. E os erros simplórios de comunicação do governo paulista nebulou o entendimento sobre a eficácia.

Assistimos, desde que os estudos do Butantan avançaram à fase 3, a um vai-e-vem de acusações de politicagem sobre o desenvolvimento da vacina. Cabe, no entanto, uma ressalva. Embora haja argumentos mais do que convincentes de como a pauta da Saúde foi tomada por interesses eleitoreiros que adiantam a valor presente a corrida presidencial 2022, somente um dos 2, entre Dória e Bolsonaro, trabalhou ativamente pela produção da vacina.

Governador de São Paulo João Dória com dose da Coronavac, vacina testada e produzida no Instituto Butantan.
Foto: Divulgação Governo de São Paulo

Não se deve, em nome do que se entende sobre política, afastar a possibilidade que um político se aproveite politicamente do fruto de sua gestão. Mesmo que este aproveitamento seja absolutamente contraditório à trajetória do gestor público.

João Dória cortou recursos de pesquisa da Fapesp. E foi por meio de pesquisadores bolsistas que a vacina foi desenvolvida. Passa longe de Dória, portanto, a ideia de que seja um promotor da ciência.

Isto não significa, contudo, que ele possa ser equiparado ao desserviço público promovido por Bolsonaro. Afinal, Bolsonaro não apenas cortou recursos de pesquisas, como desestimula a ciência, incentivando um fictício tratamento precoce e aglomerações.

Goste-se ou não de João Dória, é inegável que a postura do governador de São Paulo é muito mais benéfica ao país que a de Bolsonaro.

Os diretores da Anvisa chegaram, pois, pressionados para viverem um raro momento em que seriam o centro das atenções. E um a um, cada um dos 5 integrantes aprovou tanto a vacina no Butantan, quanto a da Coronavac.


Questão de minutos

Assim que se formou consenso para a aprovação emergencial da vacina, mesmo enquanto ainda se debatiam detalhes logísticos – essa especialidade sem proficiência do ministro Pazuello – do envio das doses paulista ao governo federal, a primeira pessoa era vacinada no país no Hospital Emílio Ribas, na capital Paulista. Monica Calazans, enfermeira, 54 anos, obesa, diabética e hipertensa, e que, apesar de estar no centro do grupo de risco, atua na linha de frente contra a doença.

O que se viu a partir de então foi um espetáculo bufo de atrasos na importação de insumos, falhas de comunicação, adesivagem desastrada, desencontros e muita batalha narrativa sobre a predominância da vacina.


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Foto: Sérgio Lima | Poder 360

Dissonância

Em algum momento futuro, o modelo de discurso bolsonaristas será dissecado dentro da dissonância gerado. Porque absolutamente nada se encaixa. É um bombardeio de informações incongruentes, abertamente falsas, o que torna o exercício de refutar o que vem do Planalto desgastante, senão impossível.

De acordo com a metodologia de lançar diversas narrativas para saber qual cola, Bolsonaro se escondeu na cortina do “o STF não me permite atuar.” Ao mesmo tempo, a Secom divulga aquilo que o governo tem feito. Uma hora, não faz porque não pode; noutra, faz algo. E nós que lutemos para desfazer esse nó.

Nas redes sociais, durante a fase de desenvolvimento da vacina, afirmava categoricamente que o governo não se envolveria na compra da vacina. Desmentiu o ministro da Saúde ao vivo, que em live constrangedora – expertise aprendida com João Dória, por supuesto – afirmou que “um manda o outro obedece. Simples assim.” Depois, diz que financiou, que tem acordo, que a vacina é do Brasil.

Bolsonaro é um valentão cabeça-de-vento que rouba o trabalho do colega na hora de apresentar. Se apropria sem se preocupar em mentir tão acintosamente. Sabe que nada virá contra ele, mesmo que o Basil ultrapasse agora a marca de 220 mil vítimas da doença.

Segue insensível ao drama do país.

Segue isolado do mundo, único que ainda defende o inexplicável tratamento (ou seria atendimento agora?) precoce, mantendo os ataques para descredibilizar e dificultar a vida de quem trabalha.

Segue fechando portas no mundo, acarretando numa fila de insumos que não tem previsão de ser acelerada.

E assim o Brasil segue sem um plano nacional de imunização contra a Covid-19.

Absurdo maior, justamente aquele que se utiliza da pandemia para fazer politicagem barata, acusa oponentes de fazer o mesmo com o intuito único de autopromoção. A mensagem nas entrelinhas é assombrosa: Ele mira na tal espontaneidade chucra, mas deixa descoberta a maldade de quem não quer que nada dê certo. Ele precisa do caos, e o viabiliza.


Dória é esperto…

Acuse-se João Dória do que for, mas burro ele definitivamente não é. Por favor, não cometa o equívoco de pensar que o defendo. Nesse embate, dou um pelo outro e não quero troco.

Só que Dória percebeu o quanto Bolsonaro está contra as cordas. E se aproveitar para projetar seu nome nacionalmente.

O episódio incompreensível do avião a buscar 2 milhões de doses da vacina de Oxford produzidas na China foi mais um duro golpe no currículo (currículo?) de Pazuello.

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Foto: Divulgação Ministério da Saúde

A linha de justificativas para o entrave na negociação com a Índia foi um arerê de mensagens desconexas. O fuso não bate, o santo também não, já tentou botar Deus pra conversar com Ganesha? Pau quebra, ficam os 2 numa tromba danada. Foi tudo comprado e pago, não tenho o documento aqui, mas la garantía soy yo. Pediram discrição, mas aí a imprensa maldita vazou a notícia, quem é esse tal de ministério da saúde que fica dando spoiler quando não deve e metendo aplicativo picareta no ar? Foi o hacker, assim ensinou Magno Malta, que não explicou de quem era a pica, ainda bem. Ernesto queimou as pontes com a China, justamente a provedora de insumos para fabricação em massa não apenas da vacina do Butantan, mas também a de Oxford, mas pelo menos estamos mostrando aos comunistas que sem soja eles não sabem viver. Pfizer veio com acordo pra vender vacina, mas governo bom que é não cai em artimanha de farmacêutica que quer obrigar o governo a gastar montanhas de dinheiro com soro fisiológico – imagine o quanto isso não dá de leite condensado. 70 milhões de doses não dá pra nada, melhor é 0 pra todo se lascar junto.

Veja que governo pela igualdade. Fica aí um povo falando de Manaus, que o governo sabia, mas ninguém pensa na dificuldade que é mover cilindro de oxigênio. Aí a White Martins fala e prova que o ministro sabia, mas que sentou em cima com cara de “não posso fazer nada”, não pode porque nem sabe, e o povo morrendo sem ar, recebendo auxílio de Maduro, que já fez com isso mais do que o governo federal inteiro fez durante a pandemia, mas o que é oxigênio para quem não tem como respirar comparado a caminhões de abacate e exportação de indústria?

Cai quem quer nessa prosa ruim.

Dória entregou a corda pro governo se enforcar. A vacina saiu – e dessaiu, porque o IFA falou que estava chegando, mas nem vem – e para todo mundo, há apenas um culpado: Jair Bolsonaro. Que não terá pudor em fritar o ministro, como já o faz, para redirecionar o ministério ao Centrão em troca de valiosos votos que impeçam a abertura de um processo de impeachment que nunca virá, porque Maia não é Pelosi, muito menos Arthur Lira.

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Eduardo Pazuello, ministro da Saúde.
Foto: Sérgio Lima | AFP

Mas, sim: e agora?

E agora é entender que, bem, o problema chega num ponto crucial de desajuste retórico. O desentrave da importação do IFA (insumo farmacêutico ativo, o ingrediente base para a produção da vacina) depende do traquejo político de Ernesto Araújo.

A capacidade de produção da Fiocruz depende da finalização de uma unidade ainda em construção.

Países do mundo inteiro vão vacinando seus cidadãos, renovando as esperanças de que o fim da pandemia está próximo.

Mas aqui o ritmo segue em outro fuso.

Estamos presos numa redoma de incompetência atroz de um governo que, em vez de atuar para resolver os graves problemas do país, direciona suas ações a mentiras com selo oficial e gabinete do ódio para atacar Dória.

E assim chegamos ao ponto em que bate um certo desespero.

A batalha de narrativas foi suficiente para fazer mover a roda da vacina, mas com alcance limitado. Resumiu-se ao lote já produzido de 6 milhões de doses.

Mas um sistema de imunização depende de capacidade gerencial do governo federal e habilidade nas relações internacionais para reconstruir conexões desfeitas em nome do que as vozes na cabeça dos olavistas do Palácio do Planalto e Ministério das Relações Exteriores sopraram de dentro do chapéu de alumínio.

Duro mesmo é confiar que esta mesma gente que causou o problema será capaz de solucioná-lo. Duro também é crer que eles ao mesmo tenham essa intenção.

Vamos nos arrastando num apocalipse zumbi, a nos comerem os cérebros, deixando gelatina no lugar, mas lambuzada de leite condensado.

O Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.
Foto: Adriano Machado | Reuters

Artigo para a Papo de Galo_ revista #10, de 29 de janeiro de 2021, páginas 31 a 36.


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Capa da Papo de Galo_ revista #10, de 29 de janeiro de 2021.

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