O alarme apitou logo cedo. Levantei ainda com o corpo um pouco sobrecarregado pela overdose de futebol. Tomei um banho, escovei os dentes. Saio para a sala vazia, minha mulher já tinha seguido para o trabalho. Silêncio.
Ligo a televisão na expectativa. Na tela, um programa de amenidades matutinas. Acho estranho. Insisto. Mudo para os canais de TV a cabo. Uma mesa redonda. Replay. VT. Tudo o que já tinha visto. Nada de novo no ar. Silêncio. Vazio.
Um certo desmantelo toma conta de mim. Como se o efeito do entorpecente estivesse passando, a vontade continuasse intocada, e a sacrista voz que emana do retângulo iluminado avisa: hoje, só amanhã.
Os efeitos no meu corpo depois de 15 dias consecutivos de partidas e 48 jogos são nítidos. Estou, sem questionar, viciado. Zapeio na base do desespero, crise de abstinência no talo, como se, sorrateiro, um rematch entre Senegal e Japão fosse pintar para decidir o desempate, ou tivesse um campeonato entre os eliminados como prêmio de consolação que estivesse fora do radar da grande mídia. Mas, não. Nada.
O jornal mostra a previsão do tempo, mais pratos de comida, jogadores brincando com os filhos. Clima de descontração e alegria, algo nível Sessão da Tarde, leve, para passar o tempo e rechear a programação. Uma lágrima solitária escorre.
Passo, então, a garimpar algo que eu tenha deixado escapar. Um lance não visto, uma cena excluída pelo diretor, um depoimento que aguardava horário mais apropriado. No esgotar do querer, na corda bamba da dignidade, me arrastando em busca de um trago, encontro um tanto de resto. Haveria, enfim, de me saciar. Num patamar muito acima da expectativa. Coisa linda. Mais que a canastrice de Maradona, mais que a auto-bolada de Batshuayi. Mais, mais, mais.
Senegal e Colômbia. Jogo decisivo. Valendo vaga. Momento primordial que exige a mais alta concentração, a mais elevada motivação, dedicação total. Escanteio para a Colômbia. O camiseta número 5 senegalês, Gueye, se posta na primeira trave. Ah, Gueye, esse menino…
Como legítimo trabalhador pernal já um tanto cansado da chefia opressora, Gueye se escora na primeira trave. Indiferente, cola a mão na cintura. “Tô nem aí!” A bola viaja na cobrança. Gueye poderia acender um cigarro, tomar um gole de cerveja. Olha para o lance com aquele desprezo de “me deixe”.
Mina, zagueiro colombiano, cabeceia para o gol. A bola vai entre Gueye e o goleiro. Nem esboço de reação. O arqueiro pula para evitar o tento que significaria a eliminação africana. Ao seu lado, Gueye vira a cara. Finge que não é com ele. “Tô de atestado!” A bola entra, a Colômbia celebra. Caberia a Senegal correr atrás do gol que não viria.
Que cena demasiado humana. Como não amar um Macunaíma redivivo? No palco em que se esperava a entrega máxima, o sacrifício sobrenatural, Gueye era a representação do oposto. Vai ver estava sol demais, vai ver era insurreição contra o sistema, vai ver tinha outras prioridades, “preciso voltar logo, minha mulher está reclamando que faz dias que eu não apareço em casa”. Vai ver que sei lá, bichos, simplesmente não estava a fim. E de boas, “Não sou obrigado. Ai, que preguiça…”
Fez meu dia.
*Gabriel Galo é escritor.
Crônica publicada no site do Correio da Bahia em 29 de junho de 2018. Link AQUI!