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Da honra e do transe

Joaquim é nascido e criado em Elvas, no Alentejo, extremo oriente português. Completou os seus sessenta anos em fevereiro numa grande festa no Forte Nossa Senhora da Graça, fortaleza do século XVIII que é patrimônio cultural do país e histórico da humanidade. É o administrador responsável pela estrutura, funcionário de longa data. Começou com 18 anos. Subiu na hierarquia trabalhando duro, de boca fechada, cumpridor. Casado com Fátima, que sempre se recusou a sair da cidade, tem 4 filhas bem casadas que fizeram carreira em Lisboa e no Porto e que lhe deram 9 netos, as alegrias de sua vida.

Manolo é nascido e criado em Badajoz, milenar capital da província de mesmo nome, no extremo ocidente espanhol. Sujeito alto e forte, um tanto bruto, não aparenta os 67 anos que comemorou em maio último. É defensor das tradições espanholas, monarquista de mancheia. Fez carreira como toureiro de respeito, aclamado pelo público. Era famoso pelo giro triunfal da espada, três voltas completas por sobre a cabeça, uma vez com a mão esquerda, outra com a direita, para descer num só golpe, mãos unidas, e desferir a lâmina fatal que romperia a têmpora do animal, que caía invariavelmente desfalecido. Aposentado, vive feliz em seu rancho às margens do Rio Guadiana.

Bastam poucos menos de 30 minutos para, de carro, atravessar de cá a lá. No meio do caminho, em território luso, repousa o Bar de Irene. Simplório, com um ar de séculos passados, oferece um bacalhau apreciado por muitos e sujeira que é melhor fingir não ver. Neste antro do atraso, os homens da região se unem para ungir canecas pesadas de cerveja local, honrando a tradição de soldados de antanho, que brindavam, embebedavam-se, brigavam e rastejam no voltar pra casa apenas quando o sol a dar as caras. Se um é de lá ou se de cá é impossível dizer, iguais que são em forma e em conteúdo, diferenciando-se em passaporte.

A única modernidade permitida – votada em plebiscito em que assíduos foram convidados a opinar – na bodega é uma televisão de 32 polegadas um punhado gasta, ativada somente em dias de jogos de seleção, portuguesa ou espanhola.

O sol ainda apontava alto na tarde deste viernes em dia que cerca o solstício de verão do hemisfério norte. Como usual, os primeiros clientes, pós sesta, foram tomando assento nas rústicas mesas e cadeiras de madeira grossa, ordenando, rudes, a primeira leva de bebidas.

Joaquim chegou sem alarde. Procurou um canto, pediu atencioso, agradeceu. Bebericava procurando evitar contato visual, motivo suficiente no lugar para se iniciar um descompasso generalizado.

Manolo chegou com alarde. Acostumado aos holofotes, parou em pose, peito estufado, como dando sinal para que todos gritassem em uníssono, “olé!” Apontou para uma mesa no centro do salão, no que dois brutamontes, longas barbas e braços como coxas, coxas como toras, trataram de liberá-la dos intrusos que se atreveram a ali estarem. Prestativa e sabedora de si, Irene já chegou com caneca pronta, “Dom Manolo!”, que ele sorveu num só gole.

Ao faltar cinco minutos para as dezenove horas, um grito ecoou no salão, mais alto que o olé de há pouco, em tom de ordem impaciente, “IRENE!” Escaldada, a proprietária correu num trote de supetão, apressando-se em ligar a televisão. No instante, os hinos de tal e qual eram cantados por varões semi ébrios. “Às armas!” “Triunfa, España!” “Iniesta es glorioso!”, um se atrevia. “Ronaldo é o tal, ó, pá!”, replicava-se de lá.

Quando o pênalti foi apitado na alvorada da partida, o “ai” contido de Joaquim foi abafado pelo quebrar da caneca espatifada na mesa e o grito gutural de Manolo, “Joder!” Quando Ronaldo abraçou a redonda na posição da marca da cal, não cabia dúvidas. A cobrança, firme, selou o contrato. Joaquim comemorou abraçado aos lusófonos, no máximo de sua exaltação retraída.

Quando Diego Costa empatou o placar, Manolo, em resposta, levantou-se num pulo. Ensaiou um sapateado hábil, para pôr-se em posição de galo carijó, mão direita erguida, a esquerda por trás da costas, pescoço inclinado com queixo apontando para cima, na deixa conhecida para ouvir a sua metade gritar, “Diego!”

No fundo, quieto e calado, Joaquim não esmorecia. Não suportava o espetáculo circense de Manolo. Confiava, sobretudo, no ímpeto e eficácia de Ronaldo. “O gajo não há de me decepcionar.” Falou baixinho, para si.

A angústia do jogo atingia em cheio as mentes de todos os presentes. Mesmo Joaquim que sentado não conseguia ficar. Levantou-se e a cada ataque, a cada defesa, aproximava-se mais do centro do salão, até pôr-se, de pé, no outro lado da mesa de Manolo.

Quando Ronaldo chutou sem perigo de fora da área, ninguém esperava o que viria. De Gea, guarda-metas espanhol, falhou e permitiu o segundo tento ao craque melhor do mundo. Neste momento, instintivamente, os olhos de Joaquim voltaram-se a Manolo, que perplexo, veias saltadas de raiva, chegava à contagem de duas canecas destruídas. Enquanto os lusos pulavam em celebração, Joaquim se aproximou de Manolo. Tocou-lhe os ombros em gesto fraternal. Neste instante, silêncio sepulcral se fez, rompido apenas pela TV a gritar gol.

Ninguém jamais havia se atrevido a tocar Manolo depois que um desavisado e desenxabido desconhecido atreveu-se a tocar-lhe a cintura pedindo passagem. Foram quatro noites em hospital, ó, coitado, que ainda manquitola, segundo espalhou-se dizer. O medo varreu a todos no bar. Seria o fim do Joaquim.

Manolo, espumando como a uma fera descontrolada, vira-se já com punhos cerrados, fronte pronta para a guerra. Vê o rosto gentil e agradável de Joaquim, que não lhe provocava, não lhe diminuía, apenas oferecia conforto. Hesitou por um segundo. Joaquim estendeu-lhe sua caneca recém-até-a-boca, em oferta, num alento. Manolo, então, desfez-se da guarda, aceitou a caneca, golou-a folgado e apontou com a face uma cadeira para que Joaquim se sentasse. Irene, que já empunhava, precavida, uma carabina atrás do balcão, soltou do gatilho e pôs-se a reencher as copas daqueles que precisavam um gole a mais para espantar o nervoso. Palavra não trocaram no intervalo além de “Manolo”, “Prazer, Joaquim”.

Não demorou na segunda etapa para que Diego Costa sapecasse o segundo e levasse ao êxtase aqueles de vermelho e amarelo. Manolo ergueu-se sóbrio. Repetiu à perfeição seus movimentos de assinatura de toureiro. Girou uma espada imaginária sobre a cabeça, para num ágil e preciso descer, ouvir uma vez mais os seus gritarem “Diego!” Desta vez, ao sentar-se, piscou o olhou direito para Joaquim, esboçando um sorriso preocupado para que não notassem.

E nem bem sentou levantado estava, depois que o torpedaço de Nacho venceu o arqueiro português. Sem mais coreografias para executar, pego de supetão pela virada que veio a galope, saiu a dançar freneticamente pelo salão. Balançava os braços, cabeça, pernas e pescoço como se espantasse um espírito na base do sacolejo. Voltou à mesa e pôs-se de frente a Joaquim. O bar, mais uma vez, parou. Foi então que Manolo abriu os braços largamente convidando Joaquim para ter com ele num abraço. “Joaquim!” O gajo sorriu e abraçou o grande e suado homem.

Com o jogo se encaminhando para o fim, a fé de Joaquim permanecia inabalável. Afinal, era Portugal o atual campeão da Europa, querência do melhor do mundo, do artilheiro infalível. Aos 43 minutos do segundo, Ronaldo sofre uma falta na entrada da área. O ar na taverna podia ser pesado, cortado com facão. Invadia a fórceps os pulmões ofegantes de todos. Manolo grunhiu, “Malparido!”. “Ronaldo?”, perguntou o quase íntimo Joaquim. “¡No! Piqué!” bradou Manolo, como se prevendo o que invariavelmente ocorreria. Porque há momentos na história em que a glória é certa, imutável.

Ronaldo respirou fundo, ajeitou o corpo. Já passava em sua mente o encaixe do chute, o pulo da barreira, a trajetória da bola, a comemoração. Tudo transmitido em pensamento a todos que assistiam ao astro português. E na materialização da construção em sinapse, inevitável, incorrigível, inapelável, Joaquim se rendeu à esbórnia máxima! Pulou no lugar, braços esticados para o alto, suas perninhas gorduchas dobradas, desengonçado e feliz. Pôs-se de frente a Manolo, abriu-lhe os braços em devolução, “Por Ronaldo!” Manolo sorriu desta feita sem preocupação, levantou-se e abraçou o projeto de amigo, como se cedendo à superioridade do sete artilheiro.

Após o apito final, em meio a alguns gritos que se trocavam, “Às armas!”, “Triunfa, España!”, o brado mestre se difundiu como se num auto-falante potente, sobrepujando os tantos mais, como proferindo por um macho-alfa líder da alcateia: “IRENE!” A atenta senhora correu tão rapidamente quanto pôde para apagar a televisão.

Em meio à retomada da normalidade que aos poucos apaziguava a euforia, Manolo e Joaquim trocaram olhares em cumplicidade. O espanhol, sóbrio do transe futebolístico que lhe alterara o juízo, redimensiona sua fisionomia. Sua honra e respeito e temor haviam de prontamente serem ressuscitados. Manolo em mutação, transportou-se do companheirismo a um retumbante e ameaçador semblante de “ponha-se daqui pra fora ou…” Para bom entendedor, meio sinal de cabeça basta. Joaquim se levantou sem olhar ao agora novamente e reinstaurado rival, dando-lhe as costas, evitando olhares que seriam motivo suficiente no lugar para se iniciar um descompasso generalizado, retornando à sua acanhada mesa no fundo do bar, quieto, calado, cumpridor e satisfeito.

* Gabriel Galo é escritor

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