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Dia 1: A cerimônia

Ibicoara, 25 de janeiro de 2017

Iniciamos a subida de volta. Mais uma corredeira vazia aqui, outra ali. Até atingirmos o topo da cachoeira do Buracão. O local é ideal para fotos e percepção da altura da senhora das cachoeiras da Chapada. Parece que todas têm que pedir a bênção do Buracão para existir. Benevolente que é, distribuiu alvarás em monta, com a garantia de que somente ela cairia se os senhores dos céus resolvessem que abundância viraria escassez.

Na beira, vê-se o alto.

Os do grupo fazem fila para tirar fotos como se quase caindo Buracão abaixo.

Entendemos que ali é o local ideal para que o vento leve meu pai para onde ele quiser ser levado. Ponderamos, no entanto, que arredio, o vento pode nos trazer ele de volta para ser engolido pela nossa respiração e pele. Tínhamos, assim, a primeira regra: seria solto virado para baixo no vão do Buracão, não para o alto. Todo encaminhamento de cerimônias mortuárias o levava para baixo, até queríamos romper a norma, mas prudência fala mais alto.

Pela primeira vez, vamos abrir a urna.

Abro o fecho, e o que vejo me faz rir.

Um saco pequeno com as cinzas. Não é que caberia num tupperware, ele nem precisaria ser grande! Estão fechadas num saco lacrado. Sua cor é cinza – e que cor haveria de ser? – bem clara, e muito rala, bem fina.

Porra, DEVERÍAMOS ter pedido um desconto. Mas estas coisas acontecem, imagino, na base da ocorrência, não do volume.

Pedimos licença para o grupo e um canivete para o Roney. Por um tempo, aventamos a possibilidade de jogar metade ali – a das pernas – e outra metade em Mutá – a dos braços e cabeça. Mas se cortasse o saco com as cinzas, não ia ficar bonito elas escorrendo pela minha mochila, e a metade a ser despejada em Mutá ser expulsa do lado da porta do carro com cara de “puta que o pariu, que cagada…”

Tudo ali ficaria, no Buracão.

Deitamos na pedra, barriga para baixo. Eu com a máquina fotográfica, Angélica com as cinzas. No que ela começou a soltar… O vento batia e criava uma nuvem de fumaça que fazia espelho ao Buracão que caia do lado. Até na forma procuraram se assemelhar.

Rapidamente, nada mais havia.

Olhamo-nos em cumplicidade. É isso. Acabou?

Acabou, no que diz respeito à cerimônia, pelo menos.

Guarda o saco para jogar no lixo. Guardo a urna de volta na mochila, muito mais leve, em peso literal e metafórico.

Não tenho como negar em sentir uma certa decepção. Na minha cabeça, tinha criado um momento profundamente emocional, tocante do começo ao fim.

Claro, houve muito sentimento envolvido. Tudo pareceu mundano demais, no entanto. Uma vez mais, o medíocre nos dando um tapa na cara. As cinzas ali jogadas, as fotos, nossa pequena cerimônia. A irônica urna, a ínfima quantidade de resto. Passo a entender que a conversa com a urna foi reveladora: realmente não estava ali o que valia.

O rito, no entanto, pode ser libertador. Um carimbo de que a partir de agora não lidamos com o físico, mas com o virtual.

Parafraseando Seu Lua, “saudade, meu remédio é escrever”. Assim, caminharemos juntos, eu e ele. Valendo muitas voltas ao Buracão, para que meu pai também possa dar a bênção a seus visitantes. Mania de grandeza era com ele mesmo.

Simbologia é uma excentricidade: seu significado é meramente individual.

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