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_Entrevista: ELISA URBANO RAMOS

_Entrevista: ELISA URBANO RAMOS

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Eu sou Elisa Urbano Ramos. Sou do povo pankararu, que fica localizado no sertão de Pernambuco entre os municípios de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá. Sou uma indígena professora, mestre em antropologia pelo programa de pós-graduação em antropologia da Universidade Federal de Pernambuco e atualmente estou coordenadora do departamento de mulheres indígenas da APOINME, a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo.

Também atualmente estou membro do Conselho Estadual de Direitos da Mulher e também faço parte do da missão permanente de mulheres rurais de Pernambuco representando a rede de mulheres indígenas do estado.

O povo pankararu, na sua origem, está localizado em Pernambuco, mas nós temos pankararu em todo o Brasil.

Eu sou uma mulher indígena e me considero feminista, apesar da expressão feminismo indígena ser carregada de contestações. Mas, do ponto de vista acadêmico, eu tenho uma definição para palavra e um estudo também. A palavra feminismo ela se transforma em apenas um vocábulo, quando vai se estendendo nas varias especificidades dos povos, como no feminismo negro, comunitário, e a gente para de se remeter ao feminismo branco, europeu.

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Elisa Urbano Ramos

Apesar do movimento indígena dizer que não existe feminismo indígena, eu posso dizer que existe porque já fiz um estudo e uma pesquisa sobre o assunto. Enquanto a academia se recusava a falar do assunto, devido à afirmação do próprio movimento —recentemente eu participei de uma live, e nela eu disse que o movimento indígena fala tranquilamente do machismo—, por que não falar do feminismo e sua especificidade, na sua maneira de acontecer?

Mesmo assim o movimento de mulheres indígenas não comunga com nenhum tipo de violência contra mulher, seja qual for o seu pertencimento, bem como não comunga com violência nenhuma contra qualquer outro grupo social.


Eu cresci criança aqui no território pankararu, que possui longa história de mulheres na liderança. Eu vi energia elétrica pela primeira vez aos 15 anos de idade. Eu tive uma infância convivendo com figuras emblemáticas, porque eram mulheres da tradição, parteiras, rezadeiras, profissionais da educação e da saúde, caciques, pajés. Mulheres que lideravam no sentido de serem ouvidas, de terem uma voz, não apenas no território pankararu, mas especialmente quando passei a exercer a profissão de professora e a conviver com outros povos.

Do ponto de vista da cosmovisão indígena, as mulheres são também detentoras e guardiãs dos saberes tradicionais, da medicina, da relação com os seres sagrados. Isso é o que me faz afirmar a equidade de gênero a partir desse saber sagrado.

O que me faz falar de equidade de gênero é a partir desses princípios da mãe natureza, que algumas lideranças nossas mulheres, como a cacique Dorinha Pankará, vai dizer que ela é cacique porque a mãe natureza a escolheu.

Dorinha Pankará
Dorinha Pankará. Foto: Eric Gomes

Isso significa que as pessoas, ao se tornarem lideranças, capazes de conduzir o povo ou de serem intermediarias entre o poder público, a cidade e a aldeia, ter voz e serem ouvidas, é algo que acontece naturalmente, participando dos espaços públicos, em principio na aldeia, dos rituais sagrados, das assembleias, seja como ouvinte, seja na cozinha.

A cozinha, por exemplo, é um espaço político muito forte, que, ao contrário da sociedade não-indígena, em que a cozinha é um espaço de subalternidade, para os povos indígenas, a cozinha é um espaço de fortalecimento, de aprendizado, e que é importante.

Esses espaços fazem parte do território, e aí eu vou a falar de terra-território, da sua importância para os povos indígenas, para a vivência do coletivo. A terra é um espaço geográfico, ela tem medidas, mas o território é mais que isso. Para nós é o espaço sagrado espaço onde moram os seres invisíveis e os visíveis. É importante porque não é apenas uma fonte, uma pedra, uma serra, uma árvore, mas por ser um espaço sagrado, morada dos nossos antepassados, é local de cura, tem toda essa importância. São espaços que congregam a história do nosso povo, dos nossos antepassados, bem como os ensinamentos que foram deixados.

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Os Pankararu em cerimônia sem seu espaço sagrado.

Então, nesse momento em que homens e mulheres são guardiões desses saberes tradicionais, e que passam essa educação para os mais jovens, eu falo de equidade. Uma equidade dada pela natureza, diferente da equidade conhecida pelas pessoas e que é dada pelo homem, que vem depois do sagrado. É com essas mulheres que eu convivi e passo a observá-las.

No mestrado, eu era a mais velha. Mas esse tempo foi importante para eu observar e compreender as desigualdades e injustiças contra as mulheres. Inclusive testemunhar atitudes de violência.

Eu tinha essa curiosidade de que a academia ia me fazer entender a gênese, o principio. Eu não entendia a violação e a negação de direitos contra os povos indígenas e contra as mulheres, a partir das atitudes, das ações que eram feitas, seja por parte de pessoas, seja por parte do poder público. Eu queria procurar a gênese, o início, para mim existe o motivo anterior à ação.


O movimento indígena ficou chocado com a declaração do ministro [Abraham Weintraub]. A fala ‘eu odeio povos indígenas, eu odeio o termo povos ciganos’ me chocou, mas ao mesmo tempo não, porque ele apenas revelou uma verdade que pertence a ele. Ele é racista. Ele apenas fez uma afirmação verdadeira da parte dele. Eu penso que para nós do movimento indígena foi um momento de ficarmos alertas e termos a certeza de que, a partir daquela fala, existe a negação e a violação de direitos.

Com certeza no Ministério da Educação não haverá espaço para respeitar a educação escolar indígena específica e diferenciada. Bem como quando ele fala ‘o povo brasileiro’, talvez ele queira fazer referência à falsa democracia racial. Nós sabemos que esse povo homogêneo brasileiro tem outra cara.

Eu vou buscar na definição de racismo, que eu entendo como um sistema, e é um sistema, porque o racismo ele se define como um grupo de pessoas que se sente superior a outros. E esse racismo ele tem cara. Esse racismo é branco, hétero, masculino, capitalista, cristão. Portanto, essas pessoas que se concentram nesse grupo não vão considerar a diversidade, não apenas de pessoas, mas a diversidade de formas de viver. E aí eu passo a pensar o conceito de povo. Não o significado da palavra, mas o conceito enquanto modo de vida.

Então, o que é um povo? O que é o povo pankararu, cigano, quilombola? Eu busco os meus ensinamentos de criança, que é a forma de viver coletivo do meu povo, de se alimentar, de viver nos seus sistemas de saúde, de educação e de convivência.

Temos, hoje, centenas de povos indígenas, tradicionais, com os seus conhecimentos, com sua forma de conviver. E nós vamos enfrentar o racismo, um outro sistema, que se julga melhor enquanto pessoas e no direito de exterminar todos e todas que são diferentes das suas características.  E  vai  fazer,  no  limite, com que esse sistema racista se autodenomine como ‘povo brasileiro’, o único povo.


Vamos pensar nessa pandemia.

Nós, povos indígenas, não estamos pensando apenas na pandemia da Covid-19, mas no conjunto de outras pandemias, como o racismo.

O racismo é também uma forma de pandemia.

Várias lideranças indígenas têm discutido essa pandemia em relação aos povos indígenas, que vão fazendo reflexões e chegando a algumas conclusões. Uma delas é a de que essa pandemia não é única. Atrelada a ela tem o racismo, declaradamente contra os diferentes dos vieses e costumes europeus que forma o ideal único de ‘povo brasileiro’.

O preconceito é covarde, mas não é mais silencioso, como antes. Antes nós tínhamos que perceber nas entrelinhas, hoje ele está nas linhas e desenhado.

A covid-19, portanto, é um elemento novo no nosso cotidiano indígena, estranho, que faz parte um outro sistema. Nós temos o nosso próprio sistema de saúde, para além do SUS, de cura com ervas medicinais, com água, com alimentos, com rezas, com a comunicação com os espíritos sagrados, com os seres invisíveis e com a mata.

Historicamente, nós nos deparamos com outros sistemas, se for pensar, por exemplo, nas doenças trazidas pelos europeus quando chegaram ao Brasil, que conjugadas a outras violências, exterminam as nações indígenas inteiras.

Povo indígena Tapeba estabeleceu barreiras para proibir a entrada de pessoas nas aldeias, em combate a disseminação de Covid-19.

Eu não sou apenas a Elisa. Eu sou meus pais meus avós, meus antepassados. Não sou apenas um corpo que fala. Eu sou um corpo coletivo. Eu sou uma espiritualidade. Eu trago comigo os ensinamentos, os saberes, eu sou um coletivo que transmite e recebe conhecimento. Eu tenho uma relação de pertencimento com o meu povo.

Eu coloco a espiritualidade em primeiro plano, porque eu sou um corpo que vem de uma espiritualidade, de um território com suas histórias, com seus ensinamentos e com outras pessoas já invisíveis, mas que existem e que estão aqui conosco.

Eu não sou apenas Elisa. Eu sou um coletivo. Os meus parentes são um coletivo.

Esse outro povo, que se julga o povo brasileiro, não quer compreender e aceitar essas formas de convivência, essas organizações sociais próprias, esse projeto de futuro, esse projeto societário de convivência, esses sistemas nossos de educação, saúde e hierarquias.

E com isso temos nossos territórios e direitos constantemente violados, desrespeitando nossa mãe-terra. Há uma autorização, um consentimento para invasão.

Eu sou um coletivo. Sou meus antepassados, suas histórias e conhecimentos, sou meu território, sou pankararu, mas também sou sertaneja, pernambucana e brasileira.

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Os Pankararu em cerimônia sem seu espaço sagrado.

No Brasil, não é permitido usar a palavra nações. Em outros países, como Bolívia e Colômbia, há governos autônomos e eles utilizam a palavra nação, formando estados plurinacionais. Aqui no Brasil essa palavra é crime. Então, eu afirmar que sou da nação pankararu, embora eu seja da nação pankararu, é crime. Mas nós temos nações indígenas, que para a legislação brasileira não são autônomas.

Respeitar a autonomia desses povos, não significa romper com o estado. Na Bolívia, por exemplo, o povo aimara não deixa de ser boliviano por ser reconhecido e legitimado. A minha origem, a minha história, minha ascendência, é pankararu.

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Povo Aimara, na Bolívia.

Quando o outro nega esta minha identidade étnica, em nome de uma forma tradicional histórica antepassada de ser no presente, ele também nega o futuro, que nós entendemos como descendência, ele nega continuidade. E negar a continuidade significa exterminar.

O extermínio dos povos indígenas foi feito de várias formas. Nunca se matou tantas lideranças e nunca se invadiu tantas terras indígenas como nos últimos 2 anos, por exemplo. E uma das formas de extermínio é exatamente o apagamento das identidades, o apagamento da memória. Isso vai estar, por exemplo, na literatura. Quando eu penso literatura indígena, ou literatura sobre povos indígenas, vai haver um apagamento do passado e do presente também.

A nós, acadêmicos e lideranças indígenas, nos pertence dar essa continuidade.

A legislação anterior a 1988 tem no espírito claramente o apagamento desses grupos sociais étnicos e o apagamento da memória. Os livros didáticos apagam a nossa existência. A academia também apaga, ao mesmo tempo que nós estamos lá presentes escrevendo nossa história.

Indígenas antropólogos estão se posicionando e se colocando, bem como outros acadêmicos e pesquisadores, colocando o pé com firmeza e dizendo ‘nós estamos aqui né nossa história não é tal qual vocês contaram. Vocês contaram nossa história nos apagando, mas nós estamos presentes’. E essa presença precisa ser firmada, não apenas a presença indígena, mas a presença quilombola, cigana dos povos de terreiro e outros coletivos.


Entrevista publicada com exclusividade na Papo de Galo_ revista #3.

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Capa da terceira edição da Papo de Galo_ revista.

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