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Fla-Flu e as duas lágrimas de Nelson Rodrigues

Fla-Flu e as duas lágrimas de Nelson Rodrigues

A maneira como conhecemos o Fla-Flu passa obrigatoriamente por Nelson Rodrigues.

Quando começou a escrever sobre futebol, já avançada proeminente carreira no teatro, levou ao esporte sua visão de fantasia, não de jogo. Era, pois, escritor, alguém versado nas letras da alma, que não ligava muito para tática ou estatística.

Observava atento as expressões da arquibancada, à catarse da gente que resguardava alegria e expectativa ao seu ardor. Tricolor ferrenho, expandia seu alcance para além do clubismo. Tanto que alguns dos textos mais bonitos sobre o Flamengo saíram de sua pena.

Nelson Rodrigues tinha, também, conexões sentimentais com a cancha. O Maracanã, maior palco do esporte bretão renascido vira-lata, ostentava orgulhoso o nome de seu irmão, Mário Filho, em sua entrada.
A paixão pelo Fluminense era seguida pela admiração pelo Flamengo, e se uniam numa simbiose em que não se separava mais o que um ou outro. Eram, pois, coisa única: Fla-Flu. Elevou, assim, o clássico a força motriz da vida, antecendendo o nada em 40 minutos.

Uniu: Paixão. Admiração. Vida. Catarse. Conexão. União.

Quis o destino que num 2020 desandado fosse subvertida a abordagem rodrigueana do Fla-Flu A final da Taça Rio atina contra tudo ao que o escritor pregou.

Em vez de paixão, indiferença causada pelo momento inconveniente. Em vez de admiração, o espanto da argumentação do dinheiro acima de tudo. Em vez de vida, um hospital de campanha compartilhando espaço, contando mortos a cada gol. Em vez de catarse, o silêncio desalmado da arquibancada vazia. Em vez de conexão, distanciamento social. Em vez de união, desentendimento e brigas judiciais.

Escorre a primeira lágrima sobre a face de Nelson Rodrigues: “o que fizeram do meu Fla-Flu?”

Só queclássico é subversivo. Clássico não aceita a imposição de poderes operados fora do tapete verde. E os deuses do futebol, enternecidos pela lágrima angustiada do descritor perfeito da metafísica do clássico, vieram em seu socorro.

Se antes este deuses já promoveram peraltices em gol de barriga, o desafio desta feita se impunha mais hercúleo. Afinal, estava de um lado estava o todo poderoso, o melhor elenco, o endinheirado, aquele que, como um senhor das sombras, opera no obscuro para fazer prevalecer seu plano de dominação eterna e ri diante de Caronte.
Arquitetaram, ao seu feitio, possibilidades da luta entre o bem e o mal.

O elixir do poder transformador, sabiam, vinha primordialmente da bancada, do grito. Mas no reinado de Mario Filho, onde um dia era cimento e brado, havia apenas plástico e exclusão.

Bravos, ainda construíram o 1 a 0 para verem o adversário empatar e dar a impressão que a virada era questão de minutos.

Era preciso, então, cartada que morasse no limite do inesperado e do escárnio, para que se puxassem as calças das forças oponentes quando desatentas.

Veio, enfim, a disputa de pênaltis.

Do lado rubro-negro da força, um pegador notório de pênaltis, aquele que pretensamente faz tremer Cristiano Ronaldo. Do outro, Muriel.

Mas há mais mistérios entre a marca da cal e a linha sob os postes do que pode imaginar a nossa vã filosofia (kisses, Shakespeare).

Impulsionado pela intervenção dos deuses da bola, Muriel, o herói improvável, foi crescendo muralha que blindou sua meta contra a armada inimiga. Uma. Duas. Três vezes (pra fora também é merito do goleiro?)

É como diria o filósofo Dinho Ouro-Preto: se o errado ficou certo, as coisas são como elas são.

Ao fim, o 3 a 2 nos penais repetiu aquele da barriga de 15 anos atrás com bola rolando. (São chegados numa simbologia os residentes do Panteão boleiro.) A resistência, no limite de suas capacidades, prevaleceu.

Talvez não seja suficiente para levar a guerra definitiva do Campeonato Carioca para as Laranjeiras, mas quem há de ligar? A batalha, a Taça Rio, deve ser celebrada. Importa hoje tão somente o sentimento de alma lavada, um alento em meio ao despautério de uma época estranha. A glória tricolor é resultado que aquece a alma e que provê um naco, mesmo que irreal, mesmo que fugaz, de esperança.

Nelson Rodrigues chora, enfim, segunda lágrima. Desta vez não mais de tristeza, pois se dá conta de que, mesmo na ofensiva gélida do futebol-negócio, a alma do esporte ainda queima sua chama. Agradecido, tranquiliza-se: ao Fla-Flu ainda pode chamar de seu.

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